terça-feira, 16 de março de 2010











pri.ma.vera




até as silvas dão flores.










como a um poema também a ela lhe faltavam duas pernas com que fugir, hábeis como as asas de um pássaro. como a um poema também a ela lhe faltava uma boca com que gritar os silêncios rente ao chão ou ao céu. quase sempre só como um poema, quase sempre pobre em rimas e versos, quase sempre triste. parcialmente ela. faltavam-lhe poemas onde pernoitar. abrir as mãos ao vazio e correr, correr com os braços e as pernas para trás até ao momento em que aprendera a chorar.







isto é




vou parir pela manhã a primeira flor na boca
uma palavra antes de ser primavera
sabes meu amor se a vida fosse minha
entregava-te as estações todas nesta
dos braços caem-me sementes gestos
sítios onde morrer de corpo aberto
até quando o amor quiser e eu for do amor
como tu és dos sítios onde não ando
como pedra fica-me o coração dentro
à espera que a pedra bata e fure o destino
e é como quando sem ti se vestem as árvores
como quando são folhas e ninhos entre elas
é onde imagino uma casa nossa
há no mundo uma beleza que te pertence
no abrir dos braços e sorrir saudade
fugir pelos carreiros nos montes dos sonhos
onde soubemos inventar a felicidade
e é a felicidade que me visita quando isto é
silêncio








minguar
(latim vulgar minuare de minuo, -ere, diminuir)

v. Decrescer; diminuir.
2. Tornar-se menor.
3. Declinar.
4. Faltar, escassear.
5. Passar (a Lua) do último quarto à conjunção.





por: mar

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terça-feira, 9 de março de 2010

andava por aí a semear dor nos corações. era-lhe difícil levar a boca ao peito e lamber as feridas por isso queria outras bocas, maiores que a dele, com línguas compridas; mas línguas compridas falavam muito e ele gostava de silêncio. o silêncio era-lhe uma casa, outra, mais pequena, onde de braços e pernas esticados tocava em todas as paredes. onde em bicos de pés chegava às estrelas e estas lhe ficavam presas ao cabelo. era por isso que de noite se assemelhava a uma constelação e era bom, deixar o corpo ao abandono da terra e observá-lo até adormecer. andava por aí a provocar a dor, queria fazê-la sangrar, vê-la parir, talvez para lhe resolver o mistério, descobrir-lhe um antídoto. às vezes viam-no a cruzar os braços em volta do pescoço, era flexível, vi-o tantas vezes num oito e tantas vezes o vi assim que quando assim não estava quase não o reconhecia. de manhã passava na minha rua, com o coração preso por uma trela, a dois passos do corpo nú. um dia o coração fugiu-lhe, bem vi, soltou-se e correu rua abaixo, desenfreado. soube mais tarde que morreu atropelado por um peão.

por: mar

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segunda-feira, 8 de março de 2010

sonhei: havia o meu corpo no sexto andar de uma casa inacabada, uma sala rectangular com um candeeiro preto, ao canto superior esquerdo uma cadeira, de madeira velha, faia creio, havia um corredor estreito, ladeado por paredes outrora brancas, ao fundo uma porta aberta, sempre aberta, para lá da porta o quarto, o tecto azul, as paredes verdes, ao centro estava ele, de chapéu na mão e olhar suspenso, parecia-se muito com um poeta que eu conheço, um que às vezes pára nos meus sonhos e fica a recitar poesia a noite toda; o quarto não tinha cama, o pavimento era uma alcatifa verde, semelhante a relva, de uma das janelas podia ver-se a baixa da cidade, pessoas em movimentos circulares, numa azáfama, com os corpos lançados para a frente para dar velocidade aos movimentos, algumas andavam tão depressa que os pés se perdiam das pernas e tinham de voltar atrás a procurá-los. às vezes o tecto era invadido por sombreados brancos, cinzentos e/ou pretos que se deslocavam lentamente ou apressadamente consoante a precipitação e era tão bonito deitar-me de barriga para o ar e pôr-me a dar figura aos sombreados, pensava: cão e logo um cão me aparecia, pensava: casa e era uma casa que eu via. outras vezes eram os sons que me visitavam em forma de pássaros, vinham com o vento, davam a volta à casa e sentavam-se, normalmente nos ombros do poeta, a cantar. esta casa, inacabada, havia há muito tempo, visitava-me em sonhos, trazia com ela fotografias da infância, em álbuns velhos, escondidos dentro das paredes, em buracos, cicatrizes no coração. sempre gostei destas visitas, aparições, subterfúgios. tantas vezes dei comigo a meio dos sonhos, como uma estátua de olhar suspenso, a recitar poesia para uma casa inacabada, de onde se viam ao longe as pessoas, na costumeira pressa de correr com a vida, ou então era a vida a correr com elas.

por: mar

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