segunda-feira, 29 de setembro de 2008

quero envelhecer, penso enquanto olho o rio. há tanta nostalgia neste sítio, há tanta vontade de morrer ontem que hoje se agita a morte na minha fronte e eu sem medo, sem vida, sem nada. às vezes é cedo para envelhecer, outras vezes é tão tarde que já nada existe senão o peso do corpo, as dobras na pele, o grisalho dos cabelos, a dor nos ossos. olhar-me no espelho é sentir-me jovem sem querer e gritar à mocidade na voz do antónio calvário.

por: mar

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eu gostava de casar.

a casa é um lugar deserto quando não estamos. hoje quando cheguei a casa e me sentei no sofá com o meu avô, senti a casa envolver-me e acarinhar-me como um animal doméstico que espera o dono com ansiedade. a casa parou nas palavras do homem de cabelos brancos e bengala que agora ajeitava os óculos. hoje, disse-me, queria falar-te de algo importante. tens vinte anos e em breve, espero, sairás da casa dos teus pais. talvez fujas com um rapaz qualquer, sempre esperei que fugisses no carro de um namorado. e eu sorri com o meu avô a segurar-me nas mãos e lembrei-me de quando era pequena. o que te quero dizer é simples, tu podes fugir, eu quero que fujas, mas por favor não te cases, casar hoje em dia já não significa absolutamente nada cátia. antes casar era partilhar uma vida e hoje ninguém tem tempo para partilhar vidas percebes? quero que me prometas que não vais casar. eu esperei alguns momentos com os olhos postos no retrato da avó, defunta em cima do móvel da sala e lembrei-me do tempo em que a minha avó fazia bolo e a casa cheirava a laranja. avô, eu nunca quis casar, nunca me apeteceu, sempre percebi o casamento como uma imposição, uma obrigação, uma prisão até, mas hoje sei, aliás, sempre soube, que gostava de casar sim, com um vestido qualquer, numa igreja qualquer, com um rapaz que ainda não conheces mas hás-de conhecer porque eu não pretendo fugir, eu pretendo viver. e ele engasgou o resto do discurso que tinha andado a preparar a tarde toda e com um sorriso nos braços pegou-me ao colo.

por: mar

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domingo, 28 de setembro de 2008

dizes, não vás.

depois abriste os olhos e olhaste as minhas mãos paradas no teu peito, respiraste a vida toda no segundo que se seguiu e eu controlei o meu corpo para não abraçar o teu em estilhaços no alcatrão. e da casa em frente ergue-se o alarido, um acidente parece motivo de algazarra, há ambulâncias com pressa abrir caminho, ao fundo da rua, por entre os carros, há pessoas à nossa volta mas nenhuma delas nos fala, eu pelo menos não ouço, tenho uma dor de cabeça maior que a poça de sangue que me envolve, vejo o teu corpo caído a uns metros de mim e não sinto as pernas, as pernas que ficaram no carro agora morto na valeta. tu olhas-me de baixo dos escombros e eu sei, meu amor, eu sei que falamos a mesma língua ainda que o silêncio nos impeça de caminhar para o mesmo lugar. tu tentas abrir a mão mas a árvore que te caiu em cima tirou-te os movimentos , matou-te os gestos e calado ainda pensas numa forma de escapares, escapares do minuto seguinte, o minutos que vestido de amarelo caminha a passo longo para te tirar dali, para erguer a árvore e levar-te. não vás e eu falo com os vidros a servir-me de carne na face, falo o teu nome por entre o pânico de alguns, sem pernas rastejo ao teu encontro mas outro minuto me detém, coloca-me numa maca e o resto que de nós se soube foi uma cadeira de rodas num funeral.

por: mar

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antes a minha morte

antes havia um sino a tocar a rebate na igreja por detrás do arvoredo, havia um padre a gritar por socorro enquanto a aldeia respondia ao alarme com os olhos ainda ensonados, havia uma morte a preencher as ruas de uma calmaria sem eira nem beira, havia tudo antes, havia a dor da perda, o negro nas vestes, a viúvez, havia o tempo de luto e o tempo de luto durava o resto da vida. agora nada mais há depois da morte, se morresse hoje o que de mim sobrasse seria colocado em caixas, algumas memórias seriam doadas, outras morreriam debaixo da cama e a maioria habitaria os contentores do lixo. se morresse hoje ninguém se vestiria de preto e o meu velório duraria apenas uma noite, uma noite com dois rostos a velar-me o corpo e outros tantos a descansar para o funeral do dia seguinte, provavelmente não haveria voluntários para pegarem no caixão e a cerimónia demoraria o tempo do padre apresentar as condulência à meia dúzia que ficaria até ao final. se eu morresse hoje o meu corpo seria lançado aos bichos e na quietude estática da morte eu ia presidir um bando de almas penadas que voltam à terra por vingança. antes havia alguém a dar sentido à minha morte, alguém que eu saberia presente no antes e no após, agora não resta nem uma sombra a testemunhar a minha vida. não resta nada e não posso morrer em paz.

por: mar

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entre o meu corpo e o teu

antes havia o teu rosto parado na janela e uma mão que abandonava o espaço em volta e cobria o vidro por uma camada espessa de angústia. havia um corpo parado atrás da parede, mudo como o betão que a habitava, havia um corpo da cor dos tempos antigos, quando o outono sabia a outono e não a tempo indeterminado.e nunca havia um adeus como o primeiro, não se erguiam vozes, não se matavam gestos, não se pegava em nada que pudesse ferir ou magoar fosse o que fosse. antes havia um sítio, um lugar chamado casa, uma casa que era do tamanho de um país, um lugar encantado com vista para um tempo que não nos pertence. antes de nós, quando o mundo ainda conseguia virar a cabeça para nos ver, erguer uma mão para nos dar, quando o mundo, meu amor, era o tempo a abrir os olhos para o nosso lado. antes havia uma cómoda velha, onde os perfumes adormeciam em cima de um pano bordado pelas rugas de uma avó, a avó era nossa como era nosso o mundo ou o tempo que lhe morava no corpo. e na cómoda esperavam alguns papéis, recados deixados em cima de uma mesa, palavras de bocas mudas onde as letras eram comidas. antes havia uma história de amor com um final feliz que agora morria na pele de um corpo preso a um caixão. 

por: mar

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é tarde para se dizer amor

é tarde para se dizer amor entre o outono a cair com as folhas da copa das árvores e a geada a secar as ervas no passeio de todos os caminhos. é tarde para vestir as ausências com trajes domingueiros e pentear os cabelos, sair como quem fica sempre no mesmo lugar, encostada ao vidro da janela que a praça come só de olhar, é tarde. é tarde para pintar todas as esperas com cores de março, e é tarde na mais tardia tarde de todas as tardes, ainda que se congelem alguns gestos, ainda que se mantenha o amor quente entre as duas palmas, é tarde para o dizer por entre a multidão de corpos que se arrasta na praça, na praça onde ainda espera  o beijo, à porta da casa dos corpos que se amaram.

por: mar

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sábado, 27 de setembro de 2008

como quem fala de ti

falar de ti é esperar que o mundo se acanhe e volte para o lugar de onde veio, é esperar que a vida se recomponha e fuja, é esperar que o tempo se esconda nos ponteiros de um relógio qualquer. falar de ti é sentir as pontas dos dedos fervilhar, o caminho de regresso a ser carne do meu corpo, a boca do meu beijo a ser o lugar das lágrimas, falar de ti é chorar, chorar como quem perde vida, como quem gasta tempo, como quem foge do mundo. falar de ti é ser atropelada ao fundo da rua estreita que dá para tua casa, parar na passadeira, olhar a tua janela e ver o fumo do teu cigarro, falar de ti é recordar-te os dedos da mão e vê-los escrever uma antologia de poemas de amor. falar de ti é sentir os dedos da morte carregar no gatilho e ver a bala correr na direcção do meu peito, é ver o meu coração em carne viva, é ser sangue a jorrar por todo o lado, é ser peito em ruínas, casa desmoronada, ferida aberta, queimadura ao sol. falar de ti é morrer, morrer de amor. 

por: mar

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envelhecer o tempo

o tempo está gasto num futuro que imaginas igual ao meu, não fosse o meu imaginação também e eu poderia acreditar ser possível partilhá-lo contigo. teriamos uma casa perto do rio, o rio seria calado e quieto e as suas margens tornar-se-iam motivo de passeios nocturnos, passeios de mãos dadas, braços dados, corpos dados, a casa teria um quarto, o nosso, com uma janela do tamanho da parede e uma varanda onde uma rede nos serviria de esconderijo para escrever, para ler, para folhear os corpos, para passear as bocas. a cozinha seria o teu mistério e o frigorífico estaria atolhado de recados, recados de amor em pacotes de leite para comprar, a porta da rua estaria sempre fechada para não deixarmos o mundo entrar. à semana saíriamos os dois para o trabalho de manhã para regressarmos a casa pela noite, ao fim de semana viajariamos pelos trilhos do nosso jardim, desde as roseiras perto da casa até à oliveira junto ao rio e por fim, sentados com os pés a nadar, escolheriamos uma estrela para pedir o mesmo desejo de sempre, envelhecer lado a lado. e o tempo seria então gasto por um bom motivo não achas meu amor? 

por: mar

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melodrama

e é quando pouso os olhos sobre o tejo que eu te sei morto, nas carvalhas que se estendem em bolotas na calçada onde o outono se dissipa, nas ondas do mar ao longe que não sabe se há-de ser tejo ou oceano atlântico, no citroen parado, na roseira brava atrás do pátio da casa que sonhamos ser nossa. é quando me vejo aqui sozinha, perante uma lisboa em apuros, que me sinto a morrer na tua morte onde o consumo último dos gestos é a perpétua madrugada que me acolhe. fico, fico aqui parada com os berros de um comboio em movimento, com o fumo de alguns cigarros, com o peso de uma cidade melodramática. visto daqui tudo parece tão quieto, tão perfeito, que se eu não soubesse o tempo no meu pulso julgaria-o parado. fico por aqui, nada mais há neste mundo que me apeteça ver sem os teus olhos, nada mais há nesta vida que me apetece tocar sem as tuas mãos, nada. fico por aqui e o tejo, que sempre foi a vista da nossa casa será hoje parte dela.

por: mar

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a fome dos bichos

e ao chegar o rosto comeu-me a casa que trazia entre os dentes, amordaçada. comeu-me a palha nos cabelos feitos de um apanhado tosco atrás, comeu-me os olhos quietos escondidos por uma pele fina, fechados como duas ostras, o rosto comeu-me a esperança, ainda que diminuta. e ao chegar perdi os pés no hall e as pernas caíram logo ali, o abandono foi lançado contra os meus braços onde a falta já há muito que se alojara e tudo foi, ainda é, de tão pequeno grande como os dias, como as horas no despertador, como o corpo deitado no meu colo. o corpo é grande como um sentimento, preso, atado às costas das mãos na chama que nos arde dentro, o lume de um cinzeiro apagado onde o cigarro vive os seus últimos dias, é tarde na mesa junto à janela, onde os teus pés reclamam os longos caminhos, é tarde no pó da fruteira em cima da mesa, onde frutos se decompõem entre formigas, é tarde no rosto que me come de tão comido, comido por pardais, por ratos, por baratas tontas a dançar na humidade das paredes. este é o quadro perfeito para uma canção de amor e morte, cantada no amanhecer de todas as vidas, silenciada na noite de um adeus último.

por: mar

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quarta-feira, 24 de setembro de 2008

às vezes mãe.

quantas vezes mãe, algures entre a cozinha e a sala, se teciam palavras que mordem ainda, mordem no pé, na perna, na mão, no corpo inteiro. sabes mãe, eu nunca me importei com as palavras que me dizias, antes mas dissesses em vez de me dares silêncios, porque sabes mãe, há silêncios que nos matam, devagar, devagar mãe e depois é tarde para se dizer alguma coisa mesmo que nada se diga. morrer sempre foi fácil contigo e entre cada palavra que dizes há uma bala a acertar-me o coração. quando não falamos não sabemos onde dói mas a dor é mais forte, enterramos o corpo das palavras mortas e à boca do corpo há feridas que se abrem, crónicas. crónicas mãe, crónicas. não digas que vai passar, não mintas. não me mintam mais, que tudo o que vivi já me chega para saber de cor tudo o que ainda me resta, sempre. ó mãe e tudo o que sempre quis foi aprender a abraçar-te, abraçar-te mãe e abraçar-te hoje parece a coisa mais difícil do mundo. baixo os olhos. nós somos dois rios mãe, dois rios separados por uma ponte, separados por uma ponte que nunca ninguém atravessou. eu choro mãe, eu choro um pouco do tanto que ainda me falta chorar e envelhecer custa-me mais por não conhecer o aconchego do teu colo.

por: mar

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terça-feira, 23 de setembro de 2008

lisboa

lisboa é capital de um país em vias de extinção, país de descobridores e descobridos, de sal em lágrimas que dão à costa com o mar onde as caravelas d’el rei já se afundaram em conquistas que envelhecem nos livros de história. 1755 é terra ao avesso, um estremecer que espreme o centro do fado, Lisboa cai e esmaga-me o coração que já era abrigo de milhares de pessoas, o mar come a “ocidental praia lusitana” aos poucos, há explosões por todo o corpo e sentimentos que morrem à flor da pele, a pele que é cinza a habitar os ossos de um corpo largado ao abandono. Lisboa chora em ruínas nos olhos dos que sobraram, olhos negros como azeitonas a secar numa tigela de barro, chora Lisboa, chora menina e moça que o choro não há-de ressuscitar as vítimas dos teus feitos gloriosos. e no interior de Portugal, pela tardinha do dia seguinte, um homem de barbas sujas e pele amarrotada conta uma história de amor, um coração a abrir-se como a terra, ao meio, memórias que lhe morrem afogadas pelo sal de lágrimas, um mar que lhe come a pele do corpo aprisionado num calabouço de um castelo em ruínas, uma Lisboa desabitada, caída como um anjo que Deus abandonou, o homem chora perante uma plateia de olhares em água, como se a história lhe pertencesse. 220 anos mais tarde dão à costa sentimentos amordaçados num peito rijo, prestes a morrer. uma mulher desembarca no cais de sodré, a roupa encardida pelo tempo, a embarcação é uma jangada feita de esqueletos e Lisboa é revisitada por uma comandita de memórias, encapuzadas, o eterno retorno. nas ruas há foices nas mãos da PIDE e um Salazar a habitar no peito do povo que é lavrado, há gado a morrer à fome, gado que é povo que vive em pocilgas e cortes, pequenos reis largados ao abandono. Lisboa chora com tropas em marcha, chora Lisboa, chora menina e moça que o choro não há-de ressuscitar as vítimas dos teus feitos gloriosos. e no interior de Portugal, pela manhã do dia seguinte, um menino brinca descalço num campo de concentração, uma mina explode e os restos do menino contam uma história de amor, um amor antigo, de um coração a explodir dentro do corpo aprisionado num calabouço de um castelo em ruínas, uma Lisboa de luto vestida. 253 anos mais tarde desenterram-se sentimentos de um corpo que é terra cavada, num campo do interior de Portugal. uma mulher, menina e moça, violada, deixada ao abandono num beco qualquer ali para os lados da Buraca, onde os assaltantes se misturam em gangs e ciganos vendem armas à luz do dia, onde os traficantes alojam as putas que vêm dos países de leste e tiram a vez às do Brasil, que há muito fugiram para o norte. o país chora uma Lisboa largada ao abandono. chora Portugal, chora país dos descobrimentos, que o choro não há-de ressuscitar a vítima dos teus feitos gloriosos.

por: mar

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sexta-feira, 19 de setembro de 2008

lugar comum

chego hoje aqui com o coração inchado, tinha tanta coisa para te dizer mas a estrada que nos separa rouba-me as palavras e prende silêncios nas veias do meu corpo. sinto nas vísceras os anos que passam, fotos de um rosto que pinto de ausências, escritos de um tempo num lugar comum, o mesmo de sempre, entre o tempo do salto e a vontade de saltar. fico por cá enquanto me habitam as certezas de um coração pesado onde boiam momentos que não aconteceram, dias que não se viveram, vozes que não se humanizaram. encosto-me ao ar, na densidade de um aqui ou agora, sinto muito pouco sem ti e morro. em queda livre sobre um espaço ferido, asa seca, flor murcha numa espera que me enterra o corpo triste. este sítio adensa-se na quietude de duas mãos que se dão, entre um cheiro a jasmim e uns centimetros de madeira de caixão, seca e envernizada com bondex. as mãos têm um lugar comum à porta das bocas, bocas que nunca se sentiram húmidas onde os lábios secaram beijos. nunca é tarde em tempo de lugar comum.

por: mar

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quinta-feira, 18 de setembro de 2008

a minha rua bate-te à porta

é assim que te vejo, sentado perto da janela com um cigarro entre os dedos da mão esquerda enquanto a direita segura uma caneta, um cão late ao fundo da rua que é estreita como as tuas mãos. o fumo do cigarro confunde-se com o fumo de um incêndio cerebral que ninguém extingue e no madrugar dos meus passos sobre a rua ouve-se o peso dos teus, em redor do quarto que é a tua casa. a tua casa tem paredes murchas como as flores do canteiro no jardim em frente, às vezes choram como as crianças dos teus vizinhos e o tecto, que abafa os sentimentos com traços de humidade aqui e ali, às vezes morre-te nas retinas dos olhos que escancarados o tomam como família. há pardais a abeirarem-se da tua janela e a madrugada abafa o teu silêncio de mansinho, quando te dás conta é manhã e a cidade berra-te na buzina dos carros parados no semáforo ao fundo da rua, a rua que é tua e é estreita como as tuas mãos. o teu corpo balança-se contra o tempo parado num relógio que a parede desleixada segura a custo, as horas são pesadas meu amor e o tempo que tens não chega para que te não sintas só. e eu fico a ver-te deitar sobre a cama que é feita de palavras monocórdicas e textos escritos á mão. amanheces-me no peito que é rua estreita com carros parados no semáforo a buzinar.

por: mar

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segunda-feira, 8 de setembro de 2008

o meu pai é um palhaço triste

sorrio às costas de um palhaço triste, daqui o mundo parece-me o que sempre julguei, pequeno. o mundo é pequeno e cabe-nos no bolso brinca o palhaço comigo às voltas a tocar nos ramos das árvores. não há ninguém maior que tu e de repente eu sou um gigante e as pessoas são mais pequenas que os meus dedos mindinhos. sorrio a pequenez do mundo com os braços no ar, às costas de um palhaço triste. e a feira popular vista daqui é um lugar bonito, com luzes que piscam e pessoas pequenas aos encontrões, com carrosséis e jogos espalhados por secções. a minha vida teria mais sentido se fosse passada em cima de um palhaço triste, aos pulos, a esbracejar a minha grandeza com apenas seis anos. a minha vida teria todo o sentido que eu lhe quisesse dar e seria a pessoa mais feliz do mundo, também seria a pessoa mais egoísta do mundo por ignorar a tristeza do palhaço. não me arrependo de minutos depois já estar no chão, pai.

por: mar

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quarto 302

às vezes encostas a cabeça ao vidro e sorris, eu desapareço num ápice antes que a tua mão a custo se erga num adeus, adeus nunca, por mais que o mundo te caia, adeus nunca. às vezes ainda te olho da esquina dobrada e é como se nunca dali saísses, quieta, a cabeça no vidro e a manta nas costas e então habita-me a saudade, a saudade é muito má inquilina meu amor. às vezes sento-me na borda e fico a olhar-te a face estática no vidro, tenho medo de ti tão distante mas voltar atrás é um caminho complicado que o tempo por certo não quererá para nós e fico. fico ali até a noite cair ou até que o frio me incomode, então desapareço como um sem-abrigo, já ninguém me conhece o rasto e o rasto afinal não é assim tão grande, um virar de rua, um cruzar ao fundo, a casa do costume. já ninguém me visita, já ninguém me telefona, já nem para perguntar por ti, é como se tivesses morrido, como se estivesses morta naquele quarto, o 302 do corredor 7, mas eu não desisto de ti meu amor e fico. eu sempre fico por aqui empacotado na película transparente que protege as fotos no álbum do nosso casamento, entre um gole ou dois do vinho que trouxemos de paris, eu e a casa, a casa e eu.

por: mar

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domingo, 7 de setembro de 2008

não sou poeta

o meu melhor poema é a minha prosa, aquela que nunca escrevi, a que ainda hei-de escrever quando não me restar força no corpo para mais nada. tenho saudades do meu melhor poema como quem gosta do inverno a cair no mar. o meu melhor poema há-de carregar anos de solidão às costas e ainda assim há-de ser o melhor amigo das horas que passo comigo. porque o meu melhor poema não tem dedicatória, é escrito em prosa num entardecer qualquer, à luz de um tempo que de me pertencer se resume a isto. o meu melhor poema há-de chorar um rio e desaguar um mar e ainda lhe há-de sobrar água para matar a sede aos mal amados como eu. saber ser poeta não é uma virtude minha e não é coisa para se aprender numa tarde, nasce com a gente e, ainda que a minha vida seja uma poesia escrita à pressa, ao joelho de uma situação qualquer, ainda que de tão gatafunhada seja perfeita, nunca o serei. por muito que eu escreva, por mais que viva, hei-de acordar todos os dias com a prosa e adormecer agarrada à poesia. 

por: mar

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desamor

o amor é bonito como um campo de tulipas a apodrecer num qualquer país baixo, o amor é bonito até ser feio. o amor é um quadro pintado na parede de uma casa, um quadro onde duas pessoas se amam até morrer ou, pelos menos, até uma delas comprar outro balde de tinta. é um par de sapatos debaixo da cama e quatro pés fora dos lençóis. o amor são duas chaves iguais em bolsos diferentes, duas alianças escolhidas na ourivesaria mais barata e pagas em prestações. o amor é bonito. o amor é a escolha partilhada da mesma dentadura até que ela apareça cheia de saliva num copo em cima da mesinha de cabeceira. uma camisa engomada e uma dor de costas. o amor é o comando avariado outra vez e uma conta da luz que supera o ordenado. ainda assim o amor é bonito. o amor é bonito como o caudal de um rio a comer a terra. o amor é um par de cortinas comprado nos chineses. o amor é um conjunto de desculpas e atrasos. o amor é bonito como a roupa arrumada no guarda-vestidos até tropeçarmos num par de meias. o amor é bonito como umas cuecas sujas a entupir a banheira. o amor é uma tarde inteira à procura da casa certa para acabar por escolher a mais barata. é um ramo de verdes onde se esconde uma rosa, é um perfume que mais parece uma amostra. amor é uma merda porque todas as coisas que são bonitas têm o condão de nos deixar na merda. e porque tudo o que é bonito leva-nos à merda, o amor é uma merda ainda maior que a vida. o amor é bonito porque somos feios, o amor é grande porque somos pequenos.  

por: mar

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viagens de dentro

veio de longe. às costas trazia uma mala do tamanho do mundo e era o mundo lá dentro em forma de memórias, tempos entre o entardecer e o anoitecer, lugares entre espaços de antes e espaços de depois. veio devagar. nunca teve pressa de se abandonar nas esquinas de rua onde parava e a berma era semelhante em todas as estradas, não se podia amaldiçoar mais. veio sozinho. a vida parecia-lhe leve e sabia que lhe cabia a árdua tarefa de a carregar, sozinho como sempre esteve, ainda que de tão só se fizesse acompanhar por um ou dois amigos imaginários. nada podia ser mais perfeito que uma viagem aos meandros de um mundo novo, sozinho com o mundo velho às costas. ele desconhecia porque raio se calavam os pássaros, não sabia porque nenhuma estrada tinha sinais, ali as pessoas caminhavam para trás e as moscas eram do tamanho de prédios e ele não tinha medo de caminhar mais longe um pouco, descobrir um rio onde as águas fugiam como animais selvagens e corriam para longe, descobrir uma casa do tamanho do dedo mindinho do pé e saber-se anão quando se sentou numa folha para fumar um cigarro. e daquela viagem ele trouxe sequelas, querelas de uma loucura que o habitava e acordou sozinho, sentado no tejadilho do carro depois de uma viagem pela sua mente.  

por: mar

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sábado, 6 de setembro de 2008

novembro morreu

às vezes pedias-me um beijo como quem pede boleia, pedias-me um beijo enquanto os teus braços envolviam o meu corpo e me convidavam para passear, os nossos passeios eram sempre para longe e entre as precauções de um resfriado e as rodas da tua cadeira lá havia lugar para um beijo bem dado, com braços que envolvem a cintura e corpos que não se separam um só instante. com o tempo os nossos passeios faziam-se entre as paredes do quarto, em desenhos de mãos sobre o teu corpo parado, mais tarde, e sem que te alcançasse outro qualquer movimento a não ser o dos olhos, passeávamos nas tuas retinas, abancávamos na menina dos teus olhos em recordares de uma vida que chegava ao fim. tu esforçavas-te para não chorar enquanto eu colava um a um todo o cabelo que te caía. às vezes pedias-me um beijo com os olhos e eu inclinava a cabeça sobre a tua boca defendida por uma máscara e beijava-te assim, devagar o frio do plástico nos lábios, o frio de algumas lágrimas no rosto. eu amo-te maria. as horas passavam entre música clássica e alguns braços amigos que te seguravam as mãos geladas, tu às vezes choravas e eu adivinhava-te a dor por debaixo da pele, aos poucos eram os rostos que se tornavam desconhecidos e o toque das mãos que já nada te dizia e até eu me esqueci no castanho dos olhos que já choravam sem saber porquê. aos poucos era a casa em apuros à espera da tua morte, o telefone aos berros no corredor e o meu corpo a morrer junto ao teu nesse fim de tarde de novembro. de manhã o pátio era estacionamento de corpos vestidos de preto. novembro morria-me nos braços, contigo. 

por: mar

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sexta-feira, 5 de setembro de 2008

a nossa morte

um dia morremos os dois, eu tranco-te as portas e selamos cartas que se começaram a escrever no primeiro dia em que nos vimos. um dia, digo eu, morremos os dois e forçosamente levaremos connosco os tempos em que vivemos. um dia seremos apenas pó em cima de um caixão pesado porque dentro desse caixão só levarão os ossos de dois corpos que se amaram. o dia, entre todos estes dias, há-de chegar demansinho e haverão alguns, poucos, rostos a chover-nos em cima, lágrimas, de crocodilo às vezes. no dia, de todos os dias, a pressa se fará infortúnio de uma desgraça em tempos de poda e os melhores fatos serão vestidos por quem nós sabemos, a missa será celebrada por um qualquer padre, a mim não me interessa que batina traga mas preferia que fosse a do tempo comum, verde. naquele dia, o dia de todos os dias, a história do que fomos fará finalmente sentido em cima de mesinhas de cabeceira ou em tertúlias de café amargo num estabelecimento qualquer, os nossos olhos estarão nesse dia tão abertos que nos será possível ver com precisão a borra de café no fundo da chávena e tudo nesse dia nos parecerá sossegado, sossegado como a paz que ambos merecemos. haverá um dia que resumirá todas as manhãs de acordares tardios, todas as tardes de pernas cruzadas, todas as noites de olhares no tecto, e nesse dia não se quedará a vida que tivemos. um dia morremos os dois, adormecidos como muros de betão armado, tão juntos que não será possível distinguir o quê de quem e o tempo acompanhará a procissão, triste como o rosto de um malfadado destino escrito pelas mãos de um deus qualquer. e o dia, que há-de ser de caras escondidas em véus negros ou lenços de papel, se abrirá em ruas de cidades perdidas que nos conheceram em gestos de gratidão e todos, os que entre nós foram, se abraçarão teimando um qualquer retorno. talvez no dia se tardem os sinos a tocar a rebate, talvez ou talvez não. no dia as nossas mãos estarão dadas como sempre estiveram e haverão duas marcas de aliança no dedo anelar dos corpos. o dia chegará ao fim com os relógios parados pela ignorância de muitos, tantos, os quantos que a vida que tivemos nos mostrou. ainda assim será meia noite em quase zero horas do relógio deles mas nós já não teremos o tempo de dormir ou de acordar. um dia morremos os dois, digo eu. 

por: mar

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quinta-feira, 4 de setembro de 2008

em dias de ontem

ouvem-se os beatles no velho gira discos da sala que empanca a cada yesterday. faz frio. a manta, que a minha avó me deu depois de morta, tem dois buracos. a parede onde deveria morar o televisor está vazia e a noite não chega para adormecer a minha solidão. a minha casa é um t1 com as paredes cheias de humidade, a torneira da cozinha faz ping ping aos sons da madrugada e o John Lennon não se cala. tenho o cão a ladrar na marquise e as roupas espalhadas pela casa, tenho a banheira cheia de água a arrefecer à mais de três horas, tenho a porta fechada e a chave em cima da mesa da cozinha, tenho alguns livros a morder-me os pés e não sou feliz. meu amor, em dias de ontem só espero que chegues depressa, depressa amor que o 25 de abril já foi há mais de trinta anos e a ditadura ainda me espera à porta.

por: mar

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tenho um jeito invulgar de dizer eu amo-te

as tuas mãos são duas flores de silva a crescer na ribanceira, os teus gestos são passas de um cigarro que descansa no cinzeiro. há um rastilho para ser aceso e há uma bomba prestes a explodir nos teus braços. um amor. a tua vida é um prédio em construção e as minhas mãos já cheiram a cimento, os andaimes já se montaram. são quatro da manhã e o amor não passa, o tempo devia ser cremado agora e morto amanhã nos teus braços. os teus braços são duas bailarinas adormecidas na montra. há uma música que chega com a noite mas não entra e a porta de minha casa é um cemitério de pautas. o teu jeito de andar é a tua forma súbtil de me dizer eu espero-te, a rua abraça-te o corpo como um casulo a proteger o bicho da seda e a calçada conjuga o nosso amor no presente do indicativo do verbo para sempre. o teu beijo é uma forma invulgar de dizeres eu fico  . abeiro-me da janela e penduro-me na corda, secar as lágrimas é trabalho para mais que uma noite. estou a um centímetro de ti e não te posso tocar, o castigo rebenta-me nas vísceras. as minhas veias são carrossel de gestos que não se entregam, no meu peito há meia dúzia de palavras a ferver e outras tantas em lume brando, os meus dedos dos pés são mordidos por vontades de ir mas o resto do meu corpo pede-me para ficar. 

por: mar

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meu querido setembro

espera. fica só mais um pouco, dá-me o abraço enquanto o tempo é morto na vontade de o fazer, era isto que te queria ter dito mas não disse e ainda assim vale tanto como a minha intenção. voltei-me para o sítio onde os sentimentos são pedaços de um peito de frango assado num prato sem par. a mesa ainda segura alguns gestos, pedaços de lembranças que hoje ferem como se fossem úlceras no estômago. gostava que não fosse tarde para pedir um abraço, ao corpo embalsamado a apodrecer no sótão da sociedade. gostava. e contar os dias no calendário é esperar que se repita o mesmo setembro. espera. fica só mais um pouco, dá-me o abraço enquanto o tempo é morto na vontade de o fazer.

por: mar

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sonho de uma noite de outono

o que hoje queria era arrastar estas bonecas sem braços para os fundos, arrumar a caixa que a música de sempre já me entedia. o que hoje queria era ter pernas que não estivessem partidas e conseguir correr para o teu colo, queria umas calças e não este vestido de balé patético e estas meias de super homem. estou gasta como a chiclete que se cola aos teus sapatos, gasta como o pneu do teu carro. 
desisto desta vida de artista. ser brinquedo não é a profissão que sonhei para mim. podem tirar-me as pernas, os braços, o tronco mas os sonhos não mos tirarão.

por: mar

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o amor mata

esperamos a vida inteira com a corda na garganta, esperamos com os pés descalços em frente ao mar a coragem de dar mais um passo. esperamos a espera enquanto a terra dá a volta a si mesma. esperamos a vida inteira com uma palavra presa na garganta prestes a ser dita. amor. amor. amor. amor. amor. tão presa que se encrava e nos magoa, entope a garganta e mata. e a palavra por que esperamos toda a vida é afinal a nossa condição de mortos. e assim morremos com os pés descalços em frente ao mar. esperamos a vida inteira com a morte presa na garganta. triste sina é o amor.

por: mar

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quarta-feira, 3 de setembro de 2008

adeus hitler

tenho um ex chanceler no meu peito, o meu coração é um bunker e nas minhas pernas alguém escreve um novo mein kampf. o meu corpo é um mundo em apuros com tanques a percorrer-me as veias, há uma guerra prestes a começar, pequena como a consciência que ainda tenho. e há um holocausto entre os meus braços, uma flor prestes a nascer num campo de concentração, está pura como o anti semitismo, há um homem a levantar o braço direito e é tarde nos seus olhos a murchar. tenho um judeu na palma da mão, ajoelhado a chorar como quem canta e há tropas nazis a marchar nos meus ombros. nos pés uma invasão soviética, a pressa de me chegarem ao coração. é tempo de ir e agora tranco-me no quarto com eva braun, ouve-se um tiro enquanto um corpo ao canto é habitado por cianureto. adeus hitler.

por: mar

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morro enquanto chove

morro enquanto chove. a cama dobra-se com o peso do meu corpo, a prateleira, que não pode chorar por ser um objecto, deixa cair os livros, um por um, devagar. há um piano a estalar notas musicais ao canto e um caderno pintado de letras a dançar com um vestido preto. é dia de funeral e os teus sapatos são de verniz, a senhora que é tua mãe não espera na porta que os convidados cheguem, o bar está aberto e não há consumo obrigatório, há um homem, cuja barriga é feita de plástico, que limpa o nariz a um pano com umas letras bordadas. o cheiro a alecrim joga sueca dentro das minhas narinas, há quem parta copos contra paredes, há quem chore e entorne água que dava para matar a sede a milhares de pessoas, há quem se resigne, há quem acene longamente com a cabeça a cair do pescoço, eu morro enquanto chove. as tapeçarias finas penduradas na parede da casa servem de consolo a muitos olhos, a senhora que é tua mãe abraça as pessoas sempre pelo mesmo lado, na mesa sobram alguns restos de biscoito queimado e umas garrafas de vinho do porto, o bar encerra para obras e a casa não sobrevive ao peso de tanta chuva. é preciso um andaime para chegar ao tecto e mudar a lâmpada, aqui a escuridão tem o cerco fechado.

por: mar

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terça-feira, 2 de setembro de 2008

grito mudo

tenho o maxilar deslocado e ainda assim berro, grito, exclamo, proclamo o infinito preso em meia dúzia de palavras num papel, o papel prende-me as mãos num silêncio de equações. tenho o pequeno almoço a bater-me à porta e os pés presos ao tecto, há sangue a habitar-me o peito onde um beco sem saída desmaia, lá fora cantam os sinos a rebate e choro. tenho uma carta escrita nos olhos arregalados, o frio que daqui se faz sentir não me desaperta a camisa, bate, bate sobre a cómoda a cabeça, à noite tudo é pesado, demasiado pesado para ser grito. fico. talvez haja um pote de ouro escondido entre os meus dentes, a boca é casa de tantos desconhecimentos... a amargura adensa-se e é tarde para ser feliz. há um relógio que se contor-se tanto ou mais que eu, nas pares santos que não me valem nem te valeram, e a minha vida é um baralho de cartas de onde fugiram os ases. não choro por me pesarem os pulsos em direcção ao chão e se chorasse por isso estava capaz de me fazer um ultimato. cravo os meus dentos nos lábios e serro as palavras como pedaços de madeira para queimar em lume brando, a lareira está acesa e já ardem os meus pecados. sete da manhã e ninguém me entende, possivelmente estarão a tentar descodificar-me em metáforas, não há nada mais que queira que saibam, nada. 

levaram-me a minha avó.

por: mar

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self-service

não vale a pena. penso. 
à noite todos os pensamentos são legítimos, mesmo os mais sombrios. o quarto morde-me o corpo, há uma janela ao fundo mas não consigo alcançá-la, é tarde e os dedos tremem-me. os olhos choram e não me sinto chorar, a decadência. a decadência e o desânimo, finalmente sinto-me humano. cair da cama é hoje como cair do sétimo andar do prédio abandonado no final da rua. espera. há uma rua que se cruza com a minha, há um semáforo e há um velho a segurar um violão enquanto finge ser o caetano veloso. não. ainda o quarto e os papéis espalhados no chão, uma seringa e se este embaciar de olhos não me engana, há uma colher e um pedaço de prata. 
estou drogado. 
levanto um braço e a minha carne flácida estatela-se contra o colchão, o colchão tem umas flores pintadas e segura uma cama que é chão de betão armado. a minha boca é saliva a cair. o barulho é ensurdecedor e eu só espero que haja alguém capaz de travar a fundo agora. não consigo mexer os dedos e a minha mão está presa a um corpo débil. fecho os olhos e descubro uma coceira na pele. socorro. socorro. e o meu corpo é uma colisão de dois carros enquanto o velho sorri. 
não vale a pena. penso. de repente tudo faz sentido e o corpo que me escreve não imagina a overdose que habita o seu cérebro.

por: mar

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proibido estacionar.

aqui está a vida, as pessoas são apenas sapatos, uma caixa velha onde chora uma colecção de cromos que já tinha esquecido, um par de patins, um aparador de lápis, a tampa de uma caneta, aqui a vida é tão fácil. o mundo é esta tijoleira e o meu espaço tem pouco mais de vinte centimetros. aqui é mais fácil ganhar a lotaria, para salvar pessoas só tenho de esticar um braço. os inimigos são pedaços de cotão, pequenos grãos de areia, alguns insectos. o cemitério fica ao canto e ainda é recente, os túmulos contam-se pelos dedos das mãos, uma família de baratas e uma aranha condenada à morte pelo supremo tribunal de justiça que é na verdade o meu pé esquerdo. eu sou feliz aqui e agora entendo porque as crianças se escondem debaixo da cama, ao contrário do que pensava, aqui está a vida.

por: mar

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segunda-feira, 1 de setembro de 2008

tenho uma dor invisível a morder-me o dedo mindinho

é dia na calçada e há ao longe um cigarro mal apagado, ao dobrar a esquina o homem de gabardine vestida e guarda chuva na mão, faz frio e a chuva está coalhada nas nuvens. ao balcão uma mulher ajeita a gola da camisola de lã, o empregado segura os pacotes de açucar enquanto tira dois cafés. a tua mesa é ao fundo, estás com o ombro encostado ao vidro, os teus olhos são agasalho de uma rua de inverno. na rua paralela a essa é um vaso com uma planta a morrer, a terra não é regada à mais de uma semana e a flor, ou o que resta dela, está pálida como o teu galão. tu acendes um cigarro e reparas que o teu isqueiro já não tem gás, estás entediado e ainda assim sorris de ti mesmo. o relógio do café tem dois segurança que são garrafas de aguardente velha. são sete horas na manhã de novembro. entra uma corrente de ar pela frincha da porta, tu sacodes as migalhas de torrada para o chão enquanto o empregado te olha de soslaio. olhas a rua parada no semáforo ao meio, estás triste mas ninguém dá conta.

por: mar

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o meu auto eu

eu sou um outono por vir, uma lareira acesa num dia de inverno que a geada domou, um poço plantado no quintal atrás da casa, o casaco pendurado no bengaleiro, a chávena de chá que espera à mesa, o canto das andorinhas em março, o toque dos tampores em romarias, o aconchego de um cobertor em dias de chuva, a janela onde gotas escorrem que se abre e fecha conforme as estações, o calo no pé a doer, a mão inchada pela má circulação, a dor nos ossos com a mudança de tempo, a mala que a senhora arrasta pelo chão, a peça de roupa a morrer no azulejo, os sapatos a sorrir sentados à porta de casa, a viola que ainda não saiu da loja, a aliança na mão da viúva, o pedaço de queijo que matou o rato no sótão, as calças que pela senhora ter emagrecido lhe ficam largas, uma garrafa vazia, o barco que adormece sobre as águas do lago, a voz dos mudos, o olhar das árvores, o grito da criança que não sabe onde está a mãe, a toca do coelho, a sombra onde muitos fazem piqueniques, o sorriso rasgado de quem não tem motivos para sorrir, o fado no rádio dos que conhecem portugal, a balança de cobre na loja ao virar da esquina, as estantes da biblioteca, a porta semicerrada da casa, o último aceno, as lágrimas que não te ensinaram a chorar, o adeus para sempre, a cadeira de encosto onde a velha balança o tempo, a mão que se ergue para pedir esmola, o barulho do carro a partir, o charco a meio da rua, a silva a florir na tapada, a encrusilhada que é casa de tantos acidentes, a manhã nos olhos dos que trabalham, o abraço que a mãe dá ao filho que regressa, a mesa da sala, o relógio no pulso do homem, o monte a esconder o sol, as meias de lã nos pés daquele que nunca andou, o cabelo preso na nuca, a ferida, a doença, a cura. eu sou.

por: mar

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