terça-feira, 31 de março de 2009

o que me consome: a espera. bordo algumas faltas, dessas que ocupam a casa e a rua e a cidade inteira. espreito, em jeito de quem já esqueceu, outros rostos, mas é o teu sempre que me aparece, por dentro da multidão, num aceno. confesso às vezes, num outro lado lunar, a saudade, terrível lugar este, onde me deixaste, e embora teimando sei que nunca hei-de regressar ao lugar onde me perdeste. por certo ainda lá voltas, ciclo após ciclo, à procura de sinais, escassos os sinais, escasso o destino, escassos os passos dos pés que colados ao chão me não deixam ir. e, todavia, haverá sempre um regresso, e as ruas invertidas voltam a florir, e o cheiro a alentejo traz-me de novo os passos, os teus, à procura de um espaço onde enfiar o tempo, onde não dizer: adeus.

por: mar

0 comentários





domingo, 29 de março de 2009

à superfície da rua, que aberta ao mar se acanha e foge, peito adentro, vida fora até perderes o espaço e o tempo, o mundo com eles. porque tudo é inconstante como um soluço, tudo volta tão depressa quanto foi, à queima-roupa, à viva memória, que se contorce e sucumbe à força de um grande amor. porque os grandes amores sobrevivem à intoxicação e ficam, atolhados a um canto, executando manobras perigosas, como danças seculares, jeitos dispersos de morder o coração. é o atrito, a força desumana dos sentimentos e não há como não sentir, como não voltar a explorar a dor até perder a mobilidade nas extremidades, até ser cinza. porque ao fim e ao cabo estamos todos mortos, e estes passos, que damos na tentativa de enganar o destino, são tiros certos à vida.

por: mar

1 comentários





quarta-feira, 25 de março de 2009

duvido que te chames ocaso embora assim gostasse que fosse, e nesta dúvida reside a clarificação de qualquer coisa impune, como o amor. na superficialidade de que és feito dou pinceladas às cegas, tento a minha sorte, que de tão tentada já não vai a lado nenhum, estagnou. o coração é um membro gasto, que bate automaticamente, mecanicamente bombeia sangue para todo o corpo e, se não fosse este gesto repetido, diria que é um membro morto, morto de frio ou calor, morto de morte ou de vida e é, nestas pequenas contradições, que se começa a chorar. é o não saber, é o não estar onde, o fechar os olhos e arrastar o corpo para longe, o degular de ideias vazias e esperar que reproduzam efeito nos confins da alma. estamos todos incrivelmente mortos e nem sabemos, e gostamos de não saber, de habitar a ignorância de quem nunca recebeu afecto. somos feridos e ferimos de dentro para fora.

por: mar

1 comentários





os teus olhos têm o fulgor de dois amantes intemporais e creio ser-me impossível fugir deles, por isso me escondo entre o dito e o não dito, só para parecer longe demais, e o que eu sempre quis, na verdade, foi uma casa, um livro entreaberto, uma página em branco onde escrever as fatilidades do destino. não tenho recordações, tenho memórias, que por si só vendem todos os meus sonhos. tenho a imperfeição de uma lágrima que cai sozinha e, ainda assim, sou a mais bela de todas as tristes.

por: mar

0 comentários





quinta-feira, 19 de março de 2009

esta noite está fria e os dentes rangem, a madrugada, incauta, desprende-se da copa das casas ou prédios. na frente da rua, jaz como morto o meu corpo, na estrada parado, riso submerso nos vértices da pele, botões desapertados e camisa suja. estou farta. esta dor que é minha, que arde nas veias e queima o sangue, que adormece na garganta e me sufoca, esta dor pequena está parada à minha frente, esbracejando como que a pedir boleia. estou gasta como o alcatrão onde descalços se enterram os meus pés. e tu, que sempre foste são, hoje regressa-me e chega-te aqui um pouco mais. um pouco mais até caires na noite e veres por fim qual dor me acanha, me entorpe os sentires. chega-te. chega-te aqui. quero cair contigo outra vez. de novo. aqui. daqui cair de vez. 

por: mar

0 comentários





quarta-feira, 18 de março de 2009

escrevo à data do aniversário, a tua morte. no cheiro dos teus olhos abertos, arregalados ao céu ferido de março, o teu nome, escrevo, entre vogais e consoantes, alguma dor. uma dor pequena, dessas pertinentes, que se entrenha na pele e arranha os ossos, dessas que a longo prazo matam. hei-de morrer sem ti, um dia destes, um destes dias, quando me aperceber que o mundo é uma sepultura de afectos, quando morreres de novo, nos meus braços, ao entardecer de um simples beijo. guardo os teus braços sobre os meus pousados e o peso do teu corpo, inteiro, dentro deles, lembro o branco na tua pele pintado e o frio, o frio do tempo a abandonar o teu corpo, da vida a fugir-lhe. para sempre.

por: mar

0 comentários





segunda-feira, 16 de março de 2009

por enquanto creio que posso desesperar: sento-me à porta de casa, os pés, murchos como as flores no canteiro, morrem-me descalços ao frio da manhã. estou desassossegado, trago qualquer coisa a latir-me dentro do peito, como um cão abandonado, a dormir na esquina ao relento. estou ausente, anormal, pesa-me na dianteira do corpo uma pronúncia forte: o amor.

por: mar

2 comentários





sexta-feira, 13 de março de 2009

espero por ti com o peito aberto, à boca do coração, os cotovelos desfacelados e um pouco de solidão. regressa-me. devagar, regressa-me. traz aos ombros uma história com um final feliz, sussurra-ma, conta-ma com os anos, deixa-a envelhecer com os meus ouvidos. respira-me. pela tarde quieta, pela vida adiante, deixa-nos esquecer numa qualquer página de livro velho, deixa-nos esmagar com o marcador de páginas de madeira, deixa-nos. ainda que se finde o tempo, ainda que morra com o nosso esqueleto, haverá sempre um pouco mais, um pouco mais de noite até ser dia. 

por: mar

1 comentários





quarta-feira, 11 de março de 2009

não falo do que não posso, não devo, não ouso, falar-te do que não espero. e o verbo falar é tão grande, cabe-lhe uma composição de sinónimos como: dizer. e espero, não, não espero porque não creio, não posso, nem ouso sequer dizer-te o que não devo falar-te ou contar-te. porque se contam as falas e os dizeres, de trás para a frente ou da frente para trás, até se decorar a impossibilidade e se perceber que há vozes mudas.

por: mar

1 comentários





dentro do poema há um pássaro, está sozinho e sacode o pó das asas. o pássaro tem um olhar manso, pousado no ocaso horizontal, onde se deitam as andorinhas, dispersas como os poetas, à espera que a estação certa chegue, para darem de asas e se esticarem ao sol. os poemas que carregam pássaros são pesados como o coração, que caminha no rés do chão de um corpo qualquer. dentro deste poema há um pássaro de olhar manso a sacudir o pó das asas. 

por: mar

0 comentários





terça-feira, 10 de março de 2009

de hoje para amanhã envelhecemos. primeiro tu: deixarás de ler as legendas dos filmes, não iremos mais ao cinema, raramente subirás as escadas do sótão e ninguém, nunca mais, lá entrará. então morrem-nos as memórias, saberemos que pertencemos um ao outro, mas esqueceremos o dia em que nos conhecemos, com o parque cheio de gente e tu ao canto, do fundo, encostado à cebe, relógio adiantado, rosto sorridente parado na corrente do rio, sem leito. quero adormecer com esta imagem, escrevê-la depressa, enquanto os ossos me deixam. quero desenhá-la, colá-la nas paredes de casa e ser velha, enfim, ser velha com ela mas não a deixar morrer. 

por: mar

0 comentários





quarta-feira, 4 de março de 2009

é porque dói que se sente, a abrir as veias no corpo, a correr com o sangue, o inoportuno e incauto, o sempre não casual: amor. é porque dói, porque arranha as paredes do corpo e se aninha ao canto, porque come a pele dos braços até ao osso, e tudo nos dói e precisa doer para sentirmos finalmente falta de abraços. é porque dói que fica, amordaçado na boca do beijo, inquieto, à espera que chegue o mau tempo, a vida com ele, à espera que nada, de repente, faça sentido, até que nos doa tanto que o corpo se sucumba. amar é morrer muitas vezes, sempre devagar, engasgar os gestos e os carinhos até que já não se saiba onde pôr os pés, e quando te dás conta caminhas ao avesso, tens os pés no céu.

por: mar

2 comentários