domingo, 31 de agosto de 2008

deste canto a rua é fria

levantar-me e olhar a chuva a florir no vidro da janela, vestir-me à pressa com olhos postos no despertador sem pilhas, lavar a cara, agarrar uma maçã e sair com o casaco na mão e a mochila às costas. a rua está doente e há algumas ambulâncias a cruzá-la, um velho ao fundo vende castanhas e um cheiro a outono entra-me nas paredes do corpo que é casa morta. fecho os olhos enquanto visto o casaco e a minha pele é frio sobre uma lã grossa. respiro a densidade do ar, o ar é gélido, quieto, sossegado e espera sempre a um canto, espera que o venhamos buscar. eu ando para o outro lado da rua e os meus pés em galochas de tons escuros tornam-se abrigo de uma estranha inquietude.o relógio da sé conta as doze horas devagar e o inverno que é céu nublado enche-se de chuva. corro. páro na esquina e olho a rua que de doente grave morre. sento-me de pernas cruzadas num chão inundado e espero a minha morte com o inverno aos pés. está frio.

por: mar

2 comentários





sábado, 30 de agosto de 2008

abismo

do lugar onde estou não se vêem pessoas, do lugar onde eu estou vêem-se bonecos a dançar numa caixa de música avariada, vêem-se animais presos numa cerca que se olharmos bem nem existe, vêem-se gotas de uma chuva que cai em agosto e ao longe, ao fundo da rua, vêem-se corpos mortos plantados num cemitério de horrores. 
do lugar onde eu estou vê-se a vida que nos sobra.

por: mar

1 comentários





a nossa casa

e a nossa casa mora por detrás das montanhas, montanhas preenchidas de pinheiros desfolhados até ao alto, no limite do céu. torces a curva e olhas o jardim plantado aos pés de um lago, no meio, sobre a água pousado um barco,a nossa casa é um barco a dormir num lago esquecido atrás de umas montanhas cobertas de pinheiros altos e desfolhados. faz frio aqui e às vezes sentimos necessidade de acender a lareira e a nossa casa arde como o casco de um barco a dormir sobre um lago. ontem adormeceste no meu colo e o teu ouvido foi companhia fiel das minhas histórias tristes, o teu braço no meu peito e o teu cabelo a fazer-me cócegas na boca e de repente tive a certeza que ali estava toda a minha vida. quando estamos certos de conhecer o rosto para lá do nome, a mão para lá do rosto, a pele para lá da mão, o sentimento para lá da pele, o rosto para lá do sentimento, o nome para lá do rosto, nós mesmos para lá do nome, tudo se torna grande como o lago onde um barco adormece. 

por: mar

0 comentários





sexta-feira, 29 de agosto de 2008

doei-te o meu coração

fico
sempre fico sem saber para onde ir, tenho meia dúzia de palavras enlatadas na garganta, o mesmo número de silêncios presos nas palmas das mãos e cá dentro, batendo-me no peito um vento. no meu discernimento ainda não encontrei uma loucura tão sã. 
fico
ainda que me pareça estúpido fazê-lo, continuo a amar-te e ter-te perto pode não gastar-me as pegadas mas arranha-me o caminho, anoitece nos meus gestos, é inverno nos meus pés e antes que a terra dê uma volta sobre si mesma tenho de partir. 
fico
apesar de saber que nada me prende aqui, estou certa de que o teu corpo agradecrá o calor do meu mesmo que não o sinta, os teus sinais vitais não existem e eu, que no meu passado te doei o coração, morro contigo.

por: mar

2 comentários





quinta-feira, 28 de agosto de 2008

tenho um outono a bater-me à porta

chove lá fora, a copa das árvores quase encolhida até ao chão em sinal de cansaço, fim de verão. gosto, quando chove, de me sentar à janela e deixar que as gotas encham a palma das minhas mãos, gosto de as confundir com as minhas lágrimas. é tarde na copa das árvores e no chão, as ruas estão desertas como o meu corpo, ao longe podem ver-se uma pernas que correm em busca de um lugar recolhido, olho o horizonte pintado de nuvens claras e escuras, uma fotografia a preto e branco. é o outono a abraçar as montanhas com um sorriso em sol menor, é o outono a vir com a chuva devagar, muito devagar que ainda não é setembro e o bom tempo foi tardio. eu espero com um outono a bater-me à porta.

por: mar

0 comentários





quarta-feira, 27 de agosto de 2008

mundo redondo

rasguei as telhas do teu céu amor, devagar enquanto a noite dormia abraçada ao dia. hoje sei da tua casa com vista para o universo, sem céu, sem mim. estaquei o corpo imóvel na berma de uma qualquer estrada em estado de degradação, afinal o teu coração tem estradas. caminho em ponto morto e não há maneira de deixar de tropeçar, a voz aos pontapés nas canelas do que me lembro. devagar dormir com o peito a bater-me no chão da rua, a rua que é na verdade a praça com vista para as telhas do céu que te rasguei amor. fico. redondante fico porque não há nada que de redondante não fique nas redondezas.

por: mar

0 comentários





terça-feira, 26 de agosto de 2008

na calada da noite

calo-me à noite mas só à noite quando tudo se cala e o céu se apaga. à noite quando o manto negro me alcança deito-me dentro de uma bota e sorrio com o tecto coberto de estrelas e é noite dentro de mim quando me calo.
a noite é redondante e a solidão que chega com ela também, cai, fica, vai, cai, fica, vai e sem entusiasmo choro um pouco quando o relógio que é lua na noite atira os ponteiros contra a torre, a torre que é o cume de mim enche-se de lágrimas e a tristeza encontra uma casa.
calo-me esta noite, esta noite em que a tua partida se anuncia breve, calo-me com o peito entreaberto de dores pesadas para sempre.

por: mar

2 comentários





segunda-feira, 25 de agosto de 2008

o beijo

o paladar do teu beijo reserva-nos o direito de permanecer calados num selar de lábios, enviados em correio azul. é tarde nas tuas mãos e entre o teu dedo indicador e o polegar põe-se o sol. e lentamente a noite entre os poros da tua pele branca cai, devagar cai em forma de estrelas cadentes que se prendem nos teus braços e é noite já, e faz-se tarde e ainda assim amanhece o nosso amor em gestos.
há o brilho de duas lágrimas a servir um orvalho fino, em gotas pequenas e um ping ping a cair-te na pele, devagar. finalmente manhã e o sol a evadir-se em raios no claro dos teus cabelos, é dia aqui e assim de repente se transforma o resto da minha vida inteira.

por: mar

0 comentários





terça-feira, 19 de agosto de 2008

o meu coração é um quarto

o meu coração é um quarto escuro, desarrumado e um pouco sujo. quando cai a noite tem a cor da tua mão, quando bate incerto cai no chão, no chão que é dor de um amor que se partiu. gostar de ti é correr como quem foge, meu amor, meu amor, como quem grita e se esconde para não ser visto, como quem se enrola em si mesmo e rebola pelo tempo, tomba. gostar de ti é descer a rua sempre pelo mesmo lado e parar no semáforo. o meu coração é um nó, um nó desapertado, desengonçado. quando chega o dia tem a cor dos teus olhos, quando bate certo tem a cor dos teus sonhos, os teus sonhos que são amor por vir. gostar de ti é saltar, saltar tão alto que se consiga beijar as estrelas. gostar de ti é morrer, morrer devagar, morrer de amor. morrer e gostar.

por: mar

11 comentários





segunda-feira, 18 de agosto de 2008

o meu corpo é uma casa morta

é inverno na casa. a chuva que hoje não deveria cair entranhou-se nas paredes e comeu-lhe o branco, encardidas pelo tempo são hoje negras como a noite que se fez inquilina dos móveis, toda a sala é de uma tristeza calada, quem se senta deixa-se estar e morre com o sofá colado a um chão que nunca o soube ser.
a tarde magoa os ponteiros de um relógio parado e no beiral da janela morreu um pássaro. morreu só. o pássaro tem os olhos arregalados e há um cheiro a pólvora queimada que lhe sai pelo peito. é tarde, demasiado tarde para aqui haver vida.
a tarde cai sobre o horizonte manchado de nuvens escuras, na pressa de um levantar cortam-se os tendões ao meio e há uma dor entre o pé e a perna, uma dor que me mata e deita o corpo sobre o chão da casa, devagar. a tarde deita o meu coração morto na cozinha e estica os meus braços pelo hall da entrada, o meu pé esquerdo no sótão e o direito fechado na cave.

o meu corpo é uma casa morta.

por: mar

0 comentários





domingo, 17 de agosto de 2008

longe vai o tempo

sentei-me na soleira da porta e esperei que acordasses o relógio do quarto, levantaste-te e calças-te os chinelos que ensonados te conduziram à casa de banho, a escova de dentes estremunhada espreguiçou-se depois do barulho ensurdecedor da porta ter acordado todo o corredor.
está frio, tenho frieiras nos dedos e não sinto o nariz.
ouve-se ao longe o barulho da mota, o rapaz dos jornais atira as notícias em direcção à minha cara, engulo uma morte, uma perseguição policial e uns dez anúncios publicitários, depois entro e roubo-te um pouco de silêncio, não o hás-de querer só para ti.

quando empurramos assim a vida, puxamos o tempo por um cordel atado numa coleira que lhe sai pela cabeça. ó meu amor, longe vai o tempo...

por: mar

0 comentários





sexta-feira, 15 de agosto de 2008

continua a parecer estúpido amar-te.

hei-de amar-te sobre todas as coisas móveis e imóveis, correr como quem se encontra, fugir como quem procura e, ainda que me perca, hei-de continuar a amar-te de longe, de longe que de perto é impossível amar-te sem parecer terrivelmente estúpido.
de te amar tanto perdi os cordões das botas e agora os meus pés não têm casa, nem pernas onde se segurarem. custa. custa o preço a pagar por ferimentos ligeiros, uma espécie de acidente com danos colaterais e, ainda assim, amar-te sobre todas as coisas, sobre a porta da rua junto com a chave de casa escondida debaixo do tapete.
julguei que o perto poderia destacar o sempre mas um encontrão bastou-me para me aperceber de como me parece estúpido amar-te se não faz sentido, rigorosamente nenhum, ter-te perto que baste para ver o sinal que me mora no queixo pelos teus olhos.

continua a parecer estúpido amar-te e perdoa-me, mas nem de longe nem de perto consigo ultrapassar o meu coração míope.

por: mar

2 comentários





quarta-feira, 13 de agosto de 2008

casa aberta

e é nas noites do teu nome que chamo pelos meus dias, fujo nas consoantes e soletro as vogais como quem corre com os braços. antecipo o outono em agosto e chove-me nos olhos e no chão do quarto na casa. a casa muda por um telhado pintado de vidro, o soalho tosco, roto como um tecido velho, gasto. a casa aberta em nomes com consoantes e vogais que dançam numa língua farta, farta de dicionários, farta de uma boca que é um mundo de sonhos mal empregados.


e é nas noites do teu nome que chamo pelos meus dias, manhãs e tardes inteiras.

choro.

por: mar

3 comentários





terça-feira, 12 de agosto de 2008

lúcia.

no peito da mala repousa cansado e sossegado o bilhete de autocarro, só de ida, sem a vinda dos que regressam com o coração a bater-lhes mais depressa. dentro do peito da mala não há corações a bater depressa, só o silêncio de quem pouco mais tem do que um caminho por onde arrastar uma mala. a mala rebenta pelas costuras de uma barriga farta de roupa de inverno, antecipas o tempo e, como sempre, estás certa. o outono que parecia demorar a passar acena agora na copa nua das árvores e o inverno, em jeito de quem chega com as mãos cobertas de neve, assobia uma dúzia de indelicadezas com nome de lugares onde nunca irás. é tarde e as ruas enchem-se de uma misericordiosa quietude, tu empurras a vida acanhada à tua frente e, pela frincha da porta, uma senhora espreita-te da sua velhice. cai a rua na próxima esquina mas tu não tens medo, sempre foras caída como o chão e hoje, antes que anunciem a tua partida entre sorrisos, tu desprendes-te das emoções e encurralas as lágrimas no topo da tua testa, há oceanos presos no topo da tua testa e tu não te importas lúcia, não te importas com o barulho da sola descolada dos teus sapatos a arrastar pequenas pedras consigo.
houve uma vida que te pertenceu mas já não te lembras quando e, agora que os teus medos estão escondidos nos bolsos do teu casaco, não perdes tempo a anunciar a sua morte. nada mais há em todo o mundo, pequeno como os botões do colarinho da tua camisa, que te cheire à inutilidade da vida que tiveras e ainda bem que assim é. um dia ensinaram-te a atar os atacadores e a partir daí, em teu redor, não havia nada desatado. eras um nó, és um nó.

por: mar

1 comentários





domingo, 3 de agosto de 2008

antónio

de todas as esperas faço um pé de meia que guardo numa caixa coberta de pó no sótão. quando o gato mia tiro um sapato para lhe atirar e ainda com uma dor qualquer a servir-me de companheira, atiro-lhe com a agulha. e a vida sem ti devia ser sempre assim, um atirar de agulhas a pêlo de gato que mia assustado.
o relógio da sala comeu as horas quando morreste e a tua morte, antónio, foi a morte de todos os quadros das paredes. no bule o chá arrefece.
e os meus dedos procuram-me o peito para me tapar um buraco vazio, toda a falta que me fazes! cresço sempre muito quando me levanto e já na janela assisto ao descer do sol, a trajectória de sempre que agora tu, meu velho e morto marido, não podes ver. apago as luzes e espero com as mãos embrulhadas no avental. hão-de haver dias e dias atrás deste fim de tarde,
dias e dias em que a tua voz não me chega da cozinha, em que o chá não aquece e o gato ainda mia, o gato ainda mia e eu, agora, sem agulhas para lhe atirar.

por: mar

8 comentários