sexta-feira, 31 de outubro de 2008

é da pele do teu peito que se fazem as mãos da distância. o coração, esse membro deslocado, dependurado, a cair-te, estica-se por todo o teu corpo, estende-se-te nas pontas dos dedos e dói-te. a noite come as estrelas e uiva alguns receios escritos à pressa, a letra desfigurada, no papel rasurado que te serve de consolo. se a noite fosse só noite, pensas, enquanto se abrem as janelas dos teus olhos e as pestanas te caem no colo de enfermo. onde estás ninguém sabe e dos teus passos não saem pegadas, não há rasto que te conduza, és sozinho. ao longo dos anos, todos os novembros são-te conhecidos, pequenos nos seus trinta dias e trinta noites de pesares profundos, à chuva trauteias canções do teu tempo, letras decoradas como as cartas que guardas na terceira gaveta do armário da sala. nasces. depois da curva dos gestos, podres sobre as mãos, há um acidente, um instante dormente como os dedos dos pés e é parado que cambaleias as ausencias de que és feito. se um dia morresses, atravessasses a sala a passo lento e escancarasses os olhos para o chão. o gesso cobre-te o corpo encurilhado com a pele ao fundo da poltrona, estás doente, dorido até aos ossos, preso. talvez se estivessemos em outubro o teu corpo tivesse salvação.

por: mar

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as tuas mãos ficaram mudas, pousadas em cima da tua bacia, brancas, prontas para morrer antes do gesto que precede um adeus. o teu corpo é um jazigo. enquanto esperas pousas a cabeça sobre o vão da escada e aninhaste em ti, ficas ali não sei por quanto tempo até te aperceberes que o teu corpo assim fechado é uma concha que não deita fora a ostra. os teus seios são dois figos maduros que a figueira em breve deixará cair, tens dois queixos e a pele da tua barriga é um vale repleto de pequenas fendas montanhosas. se fosses apenas pequena como os dias, intemporal como ele, do alto da sua juventude, no compasso discomposto das mãos pousadas sobre a tua cintura a pedir-te uma última dança, se fosses apenas capaz de voltar ali. o salão coberto de gente risonha, gente vazia por dentro, gente aparente e os dois, inclinados sobre o bar com um martini rosé na mão a sonhar uma casa de frente para a praia. tudo o que tiveste foi uma noite e nem naquela noite soubeste ser feliz. quando agora te olhas ao espelho não vês a candura dos dias a entardecer, nem tão pouco a primavera a antecipar o verão, és inverno ou és fora de estação, nenhuma flor crescerá entre as tuas silvas. dói-te fundo no peito, o buraco negro no lugar do coração, estás podre e os teus órgãos caem-te aos pedaços sobre o chão, a pele debaixo dos olhos, debaixo dos braços, debaixo da saia morre, morre no tic tac do relógio que te come o pulso. eras surda e não tinhas sonhos, tinhas as mãos delicadas como duas ampulhetas prestes a explodir areia no fim do tempo, ao fim ao cabo sempre foste o limite, a linha ténua entre o perfeito e o imperfeito. e a tua solidão é elevada ao quarto onde ele te enfiou a mão, ladeira abaixo a mão em movimentos circulares, da frente para trás, de trás para a frente e o mundo todo lá dentro, à espera na mão a sugar-te os anos. foste tu, no substantivo de um verbo que nem ouso nomear, ateada em fogo, barril de pólvora, tu. talvez os anos te pareçam agora curtos mas foram longos como os dedos das mãos que olhas, é no planalto do conhecimento que as sabes tuas, as mãos, sempre mudas, pousadas em cima da tua bacia, brancas, prontas para morrer antes do gesto que precede um adeus. 

por: mar

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quinta-feira, 30 de outubro de 2008

onde tens mais frio é nas mãos. pesam-te os olhos em direcção ao chão e as costas dobradas pelo peso das memórias caem, a rua é feita dos teus ossos. o banco espera-te por detrás do portão, vazio como sempre, tu encurrilhas a pele para caber nele, nunca nada te serviu. às tantas lembraste do que de ti fizeram as bocas dos outros e matas-te. é já tarde que te matas, quando as dobras da noite se afogam na copa das árvores, presas por um fio ao céu as pernas nuas, és velha, gasta como o pedal da bicicleta que te comeu os verões. o inverno é triste nas folhas que te caem dos dentes e antes que o gelo derreta ainda sonhas. os teus braços são baloiços onde se aninham abraços por dar, estranhas os gestos, quietos no fecho do vestido e é ainda morta que foges, com as mãos frias e os olhos a pesar o corpo contra o chão. não gastes os passos a terra é uma esfera.  

por: mar

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quarta-feira, 29 de outubro de 2008

esperas a noite a cair sobre o horizonte ao longe, é outubro e as horas contam-se de trás para a frente como uma lenga lenga. apesar da velhice que te cai com os cabelos e com as peles penduradas debaixo dos braços, não te esqueces de chorar. ficas ali, quieta, a ver o sol apagar-se e os candeeiros da rua a acender em uníssono. do alto da tua casa prevês a morte do outono e a geada que cai com o orvalho embriaga-se no nevoeiro. um dia soubeste ser feliz. é de longe que te recordas, a face entreaberta em risos dados à socapa, o corpo a murchar devagar por debaixo das roupas e, sem dares conta, voltas. a casa está vazia e o corrimão das escadas continua partido, sobes os degraus devagar para ouvires o ranger da madeira do soalho, tão familiar. lá em cima esperam-te móveis cobertos por lençóis brancos, alguns objectos empacotados e o velho gira-discos. apagas a luz e deitaste na poltrona, fechas os olhos e deixas que te desça pelo corpo a tristeza de ser velha, velha como os trapos. da tua velhice consegues cheirar a derrota. podias ter sido tudo o que quisesses, eras bonita, mas escolheste o amor.

por: mar

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esticas os músculos das pernas por debaixo da mesa que empurra a parede para dentro da rua, ela tem um nome mas ninguém sabe dele ou então é dos vizinhos que se faz a imagem do que se recorda, fina como a pele dos dedos que ligam a mão a um corpo morto, de distâncias feito. talvez seja tarde para aprender a ler ou a escrever o que nunca se viveu. fecha-se na gaveta com uma inquietude qualquer que lhe pertence e dobra-lhe as pernas no joelhos quietos debaixo da mesa, a mesa onde um dia se sentou pela última vez, antes de dizer adeus ao que fora para perder-se no que deveria ter sido. às vezes dá por si sozinha, mais sozinha que só embora as gavetas de uma mesma cómoda possam esconder uma vida inteira a fugir por entre os dentres, podres como a pele dos lábios que nunca conheceram o sabor de nenhuma palavra. está despida, só, debaixo da noite e é dos traços negros da delicada simbiose crespuscular da lua que se lhe vêem memórias da pele, branca, pálida talvez, debaixo dos olhos posta em sossego, ela chora. não lhe dói a caneta entre os dedos das mãos, dói-lhe a vida que nunca soube viver e desapareceu numa escrita à pressa em sangue sobre o testamento. hoje vai morrer.

por: mar

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terça-feira, 28 de outubro de 2008

tinhas chegado tarde e a chuva estava a acabar o dia, tiraste o casaco ainda a rua ia a meio e meteste na cabeça que querias ser amado, quando a viste julgaste que seria perfeita para partilhar uma cama, a casa nunca partilhas. em tempos de chuva sabe bem recostares-te no sofá e alimentar algumas memórias, ter o papo cheio de nostalgias, a cevada na caneca entre as mãos presa como o pardal na gaiola, fechas os olhos e voltas atrás, quando o dia durava o tempo de um abraço. as mãos dela em volta do teu corpo e o tempo parado na humidade das paredes, eras feliz e nem o sabias. é outubro nos teus olhos tristes a descer a rua pelo lado mais frio. podia ser domingo, pensas. vê-la sair ao fim da tarde com a casa às costas e alguns medos entreabertos nas palmas das mãos e depois deixar cair o corpo sobre o soalho, feito de madeira, envernizado pelo pó de tantas faltas sucessivas. ficar murcho como a flor na jarra da mesa da sala, apodrecido como as maçãs da fruteira, só. é de recordações que se alimentam as horas nos ponteiros do relógio, a marca de todas as esperas no enterro de uma certa saudade. podia ser ela, pensas. a sombra atravessa o pátio e vem sentar-se à margem do teu corpo, fala-te da manhã com os olhos na copa das árvores. a rua adormece e tu calas alguns silêncios como quem abandona o corpo para morrer longe. podia ser domingo, hoje, podia ser ela, choras.

por: mar

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é depressa que corres, as horas comem-te o pulso esquerdo e a vida passa por ti agarrada às patas daquela cadela esfomeada, a virar o lixo do outro lado do passeio. se a noite fosse mais comprida não te cabia no bolso roto das calças. são horas de dormir e a puta esvazia o maço de tabaco. lá atrás, onde o dia ainda sabia a dia e a noite não durava mais de oito horas, havia uma criança a saltar no parque, a mãe olhava-a de longe não descuidando o zelo e as outras crianças brincavam ao lado dela com as suas mães. as tardes eram bem passadas amélia, as horas arranhavam os joelhos sempre que caías e caías tantas vezes que já não havia pele sem cicatrizes. é depressa que corres com uma grade de cervejas no estomago e uns movimentos cambaleantes nas pernas, tortas pelo excesso de alcool no sangue. e de novo a puta à espera ao fundo da rua, com os seus olhos verdes a servir de semáforo aos trabalhadores independentes. tu esperas por ela, a tua mãe amélia, esperas com a garrafa de vodka entre as pernas, é demasiado tarde para se ser criança e cair do baloiço. tu alcanças a puta e desapertas a berguilha, é hora, pensas enquanto vomitas algumas técnicas de engate. a tarde cai por detrás dos prédios ao teu lado, ergueste e foges para os braços da tua mãe, ela leva-te ao colo rua abaixo até o parque desaparecer na linha do horizonte. era uma vez uma puta com cicatrizes nos joelhos. 

por: mar

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segunda-feira, 27 de outubro de 2008

esperas que passe a monção, a chuva pernoita no teu colo, enrolada nos braços que não sabem onde foram parar as dores.  a manhã foi pesada e algumas músicas, de dias menos felizes, entraram-te pelos ouvidos e fizeram cama no teu coração. ficaram. ontem o conto parecia ter um final feliz, hoje o lobo comeu a avó e o capuchinho foi violado pelo lenhador. a noite acarreta alguns medos, coisas que vêm de dentro e se acumulam com o pó em cima dos ossos. há pesares doridos e as agulhas que se espetam entre a carne e o músculo aquecem-te a solidão. tens falas decoradas entre silêncios, flores a crescer nas mãos onde apodreceu a carne pela falta de carinhos. talvez a tarde te caia aos pés e te dês conta que o avesso do relógio interrompe as paredes da casa onde vives. estás sentado na noite e ouves o miar dos gatos no limite da rua. talvez hoje caia um anjo. a porta está cerrada por fantasmas que te chegam do passado. antes havia  o tempo de ser feliz, com vozes que vinham de perto e corpos que se desapertavam como parafusos. o tempo é uma máquina. olhas as mãos paradas no vidro,  foge, corre com a chuva, para longe, tão longe que os assobios do metal contra o plástico não se confundam com risos e que o cheiro a borracha queimada morra na fricção do dedo polegar com o indicador. és livre. 

para o meu amigo bruno sousa villar

por: mar

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tens a garganta a cair-te pelos braços. páras o percurso matinal e ajeitas as mãos nos bolsos. perdeste as mãos. olhas-te na berma de todas as esperas, fazes pés de meia com elas, aquecem-te no inverno quando a geada te come o calor. ontem eras inteiro hoje és uma parte de qualquer coisa que nunca soubeste o que foi. ela saiu de casa com a vida às costas, pelo caminho pudeste ver-lhe algumas lágrimas escorregadias. o asfalto empobreceu a partida. devias ter chorado e hoje choras tudo, devias ter gritado volta enquanto era tempo de voltar, agora não há nada a fazer. sentaste, tens a casa às costas e filhos entre os dedos das mãos, a esquerda segura-te o queixo e a direita apanha saudades que se tiveram ontem. em algum lugar estão os braços, caídos num cubículo vazio, ela anda agora sem eles, crucificada por abraços só com uma letra. o cão que se senta agora ao sol do outro lado do passeio espreguiça-te a garganta entre os dentes, corres. os teus passos afundam-te o corpo, já não há caminhos. 

por: mar

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bateu a porta atrás de si na noite alta, ao fundo da rua esperavam dois homens. de dentro para fora é mais fácil esperar. ela correu para os braços da mãe e antes de dizer mãe já chorava, depois os braços pequenos enrudilharam-se na cintura baixa de uma mãe alta, o abandono, a entrega. eram 23h e a rua estava deserta, no carro dois homens trincavam a cauda à noite. o nevoeiro comia os barcos. sentou-se com ela à porta do porão, contou-lhe uma história que metia uma mãe sem dinheiro, uma filha doente, a menina, pequena como os dias, atirava pedras à àgua. chamo-me amélia. ela entrou no carro e as suas mãos afogaram-se em dois corpos, dois menos um igual a três. era um adeus mas nenhuma das duas sabia, a menina correu sobre o pontão e foi sentar-se com os pés dentro de água, a mãe ao longe com as mãos agarrava a cabeça. ouviu-se um barulho na noite que cortava o mato à borda da estrada, amélia chorava. amélia corria e um corpo pequeno era engolido pelas ondas que iam mais depressa do que vinham.
19 de setembro de 1987.

por: mar

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sábado, 25 de outubro de 2008

apagas a luz e escondes-te atrás da cortina, olhas a rua pelo mesmo lado, o teu, mais sombrio, onde a casa se aninha sobre os passos vagarosos da madrugada. do outro lado da praça, a despertar de outro qualquer estado de apatia o soalho range os pés descalços, molhados como o corpo enrolado na toalha fria. o outro despe o casaco e atira-se de encontro à cama onde os lençóis desfeitos maltratam a madrugada que espera calada ao cimo de qualquer objecto. há qualquer coisa a prender a aragem, uma inquietude que chama do fundo do guarda-vestidos e empurra a cómoda contra o teu peito, memórias em forma de fotografias e recados e palavras que te chegam de longe. quando te ensinaram a andar tinhas dois anos já e os pés de tão tortos gastavam os dedos contra o asfalto. ele espera que as paredes empurrem a cama mais para o canto, onde a luz não chega é mais fácil adormecer. há quem ajeite a almofada contra o pescoço tosco a desprender-se de um corpo murcho. que horas são não sabes, há muito que perdeste as horas entre as tantas palmas que te proibiram a passagem. litros de sangue a correr banca abaixo e o ensurdecedor ruído da batedeira. ele ergue-se com o coração aflicto. especado em frente à casa o homem deixa as mãos enterrarem-se-lhe no bolso. dez horas menos dois ou três quartos da casa na outra rua e a puta é esfaqueada.

por: mar

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à noite o bosque aquece algumas memórias e as corujas voam árvores adentro, pousam-te nos ombros de rio surdo e ficam ali toda a madrugada aberta sobre as folhas, caindo pela manhã. à noite pesam-te algumas lembranças nos olhos e as pupilas soltam o sal de algumas lágrimas pesadas. na noite dos meus dias ergue-se a voz, alta como o cantar da sibíla sobre o monte ao longe, no alto, da noite que te sucumbe. abriste os olhos à noite que te entrava pela janela, ficaste a beber algumas memórias. os olhos dela, escancarados sobre os teus, molhados, feridos como os lábios cosidos, fechados, queimados a ferro e fogo. ficaste. nas costas das mãos carregavas os carinhos que não lhe deste, a vida presa nas pontas dos dedos mortos no braço esquecido no corpo adormecido na casa perdida no monte. à noite os teus segredos vêm à tona do coração e dói, tudo dói e arde nas vísceras, a ferida espalha-se pelo sangue e é crónica como a infância que não tiveste. choras, ainda que o choro te não traga o que perdeste. despes do corpo o gelo que te ocupa os lugares da pele e habitas uma tristeza que despe sentimentos. ela abre a porta e entra com o coração seguro nas mãos abertas em concha. à noite. 

por: mar

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sexta-feira, 24 de outubro de 2008

ela sentou-se à porta com os gatos. quando ele desceu a rua ergueu-se dentro de peito uma espécie de mágoa, algo que foi crescendo com a idade, então nas pernas doeram-lhe os ossos por dentro da pele, rasgavam os tendões, alojavam-se à superfície. ela e ossos levantaram-se, ajeitaram o xaile ao corpo frio e com a bengala na mão continuaram o seu caminho, dois passos à frente dos dele com os gatos. ele às vezes sorria mas hoje não lhe apetecia e com o peito cheio de memórias vindas de longe espreitou-lhe as costas, ligeiramente dobradas sobre o peso dos dias, sentiu-lhe a cal dos cabelos em queda livre sobre a calçada da rua. a velhice magoa. doía-lhe o coração mas não sabia de que lado e por isso chorava. os gatos interromperam o percurso a meio da rua, do outro lado algumas palavras pararam os ossos dela, algum calor a romper o gelo que cobria a pele. ela falou, devagar, alguns gestos mortos nas mãos há anos enquanto ele, um pouco mais atrás, ajeitava o casaco e fazia tempo. quem diria que o amor fosse um sítio à distância de alguns passos impossíveis de dar.

por: mar

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ela e a sua corcunda deram a volta à praça e foram aninhar-se no segundo banco virado para o mar. lembrou-se do barco ancorado no cais em frente, dos marinheiros vestidos todos de igual, das mãos erguidas em acenos num azul claro como o que hoje não está. eram sete da manhã e as gaivotas passeavam na praia, um jovem corria na areia ao som de uma música qualquer, ao longe um pescador montava o material, algumas pessoas caminhavam na marginal, manhã apressada esta e ela ali, tão só quanto sozinha. deixou-se fechar os olhos por alguns minutos, voltar atrás, ao tempo em que estes eram duas poças de água salgada, ao tempo em que as suas mãos eram modas antigas que passam de boca em boca. ela chorou com os braços segurando a cabeça. os pombos ofereceram-lhe a sua tristeza e algumas gaivotas vieram juntar-se a eles. a solidão é uma agulha. 

por: mar

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quarta-feira, 22 de outubro de 2008

estacionou o carro à porta do 47, saiu com o passo travado pela saia que lhe dava pelo joelho, sorriu um pouco quando o casaco ficou preso na porta do carro. estavas sentado, tu, à porta do jardim com as mãos presas entre as heras da cerca e não deste conta do seu regresso. estavas com os olhos presos no que ela fora, mulher, mãe, senhora, para sempre. não quiseste ouvir o barulho das rodas do carro contra o asfalto, cada vez mais perto, cada vez mais dorido. tu não a amas. entrou em casa apressada, queria ver-te, correr para ti como sempre tinha sonhado, no bolso do casaco algumas fotos de um casal feliz que há muito tinha morrido. tu empurravas agora o baloiço com o corpo, alguns patos adormecidos no lago levantavam-se e vinham ao teu encontro, em fila indiana, talvez esperassem um abraço ou algumas migalhas de pão. tu nem sequer a olhaste quando ela entrou no jardim e a voz se abriu num abraço que não querias. envolveu-te com os braços postos num desassossego continental, segredou-te alguns nuncas e muitos sempres, amor eterno. tu choraste como um desalmado, sempre choras como um desalmado quando a tens perto, nunca soubeste porquê. se a amas ninguém sabe, nem tu, nem ela, tanto quanto julgas queres os corpos longe, como o carro longe, na estrada longe. não és feliz e a alma pesa-te mais no corpo com os braços voltados para sul. 

por: mar

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quando a noite caiu ele encolheu-se no tapete da entrada da casa, entre o welcome e a lã castanha do seu casaco tentou ser feliz, mas ser feliz era mais difícil do que pensava, lembrou-se da tarde a cair por detrás da casa, da oliveira inclinada para o rio entre os dedos das mãos dela, parado, a água estática deitava à tona muitas folhas de um outono prestes a começar. ele chorou, às vezes chorar faz bem. chorou o peito cravado de recordações mais pesadas, tantas, que tinha guardado ao cimo de si para chorar quando tivesse tempo, agora tinha tempo de sobra para chorar ou para morrer. ele morreu. morreu no comboio, na carruagem 23, o segundo banco do lado da janela. morreu com a mão erguida a acenar todas as despedidas de uma vez só, para nunca mais voltar. ele sabia que a morte era uma casa deserta, ele sabia. soube-lhe os dedos a murchar com os raios de sol a entardecer, soube-lhe a mão a secar, branca como a cal das paredes que ainda o seguravam, ele soube-lhe o corpo em decomposição à porta da estação, entre o pó do caminho de terra batida e a carruagem deserta. teimava em não acreditar que o amor morria mas agora, depois de morto, parecia-lhe razoável acreditar na morte de um amor. já não era nele que ela pensava mal acordava, já não era por ele que ela se penteava e colocava a fita preta a segurar o cabelo longo, esticado até ao rabo, já não era para ele que ela se vestida, sempre em tons lilás como ele gostava. ele tinha morrido nela, para sempre. agora, ali, sentado à porta da casa deserta que habitava, ele queria morrer de tão morto que estava, cerrou os olhos com os dentes e recostou-se melhor no tapete mas só conseguiu chorar mais um pouco. até a morte lhe parecia agora um lugar demasiado longe.  

por: mar

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penso: é outono.

ela parou à porta da casa, as escadas eram estreitas como o amor que lhe tinha, o tecto ameaçava ruir não tarda e as gotas da chuva entravam grossas por debaixo da porta. a rua estava parada como o trânsito no semáforo ao fundo, junto à esquina dois corpos abraçados debaixo de um guarda-chuva. ela não sabia para que lado da rua ficava o sítio de onde veio e parou, parou com os pés já molhados, sentou-se na soleira da porta com o cansaço nas mãos enrugadas pelo frio da tarde. tinha saudades dele e no peito enterravam-se agora alguns silêncios. ela tinha o mesmo nome que tu e chorava, chorava a fotografia cravada nas costas das mãos com o toque, o último toque num para sempre que não durou mais de dois dias. alguns corpos passeavam as suas desilusões rua acima e as lágrimas dela misturadas com a chuva formavam poças onde acidentalmente muitos molhavam os pés. o relógio da igreja insistia em afastar a tarde já gasta e algumas folhas caíam como mortas ao longo dos passeios. é outubro e dentro e fora dela há um outono. um cão vadio inspecionava os caixotes do lixo às portas da casa em frente, de dentro da casa chegavam-lhe algumas vozes azedas, fortes gritos de uma discussão quotidiana e ela chorava, chorava a tarde morta nos seus braços, a tarde morta em memórias servidas numa bandeja de sonhos violados. alguém lhe gastou o futuro. 

por: mar

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terça-feira, 21 de outubro de 2008

estás de passagem?

ele senta-se com o sol a bater-lhe nos olhos, as mãos seguras ao lado do corpo, os olhos pousados na água onde algumas sombras se desfazem ao cair da tarde. ele espera. ela não sabe muito bem o que dizer, dizer alguma coisa parece-lhe caminhar em sentido contrário, estacionar num parque privativo. ela cala-se. às vezes a tarde espreita-lhe por cima dos ombros e o cheiro do outono desprende-se da copa das árvores e vem sentar-se-lhe ao colo; outras vezes é do mar que lhe chega a certeza de outubro. ele não sabe o que lhe vai no coração, desaperta alguns sentimentos devagar, depressa dói e enquanto as horas morrem no relógio preso ao pulso a cidade berra memórias menos felizes. ele levanta-se. as casas são todas pintadas das mesmas cores e ao longe vêem-se barcos que deram à costa memórias, há um farol ao lado do pontão e enquanto ela se deixar dançar pelo cheiro a sal ele aproxima o casaco contra o corpo. está frio aqui. sentam-se no convés de um qualquer café, falam dos dias, das horas, de algumas casas mudas e de longe ela recorda-se de tantas tardes como esta, quando o frio do outono lhe caía nos cabelos ainda longos, quando o vestido de lã não chegava para lhe aquecer o coração. ele agarra-lhe a mão agora gelada, talvez lhe pressinta algumas lágrimas à espreita, os olhos de ambos parecem perdidos na areia mais à frente. a solidão começa-lhe com a tarde a cair e ele não sabe disso. ela podia chorar mas enforca as lágrimas nos olhos. ele podia falar mas mata algumas palavras no céu da boca. há uma inquietação que lhes chega do mar alto e fica. 

por: mar

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segunda-feira, 20 de outubro de 2008

cai.

cai o coração. as mãos correm pela casa e morrem na maçaneta da porta do quarto, andar. a tarde é de chuva miúda contra as vidraças, alguém se abraça e a rua chora o inverno ao colo. podia ser quarta feira de manhã ou sábado à tarde, o tempo é indiferente. anibal arregaça as mangas da camisa, os sapatos rompem a sola contra o asfalto, sorri. a casa era decerto vazia, talvez num ou noutro dia conhecesse um ou outro rosto mas na maior parte das horas era sozinha. a porta da rua está fechada mas pela frincha consegue-se despir um segredo. aníbal estende as mãos à chuva, estica os braços, gira, está louco. há sangue na roupa no chão. 

por: mar

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sábado, 18 de outubro de 2008

olhos cor de azeitonas

amélia olha-me nos olhos, a sala é enorme, a casa é de longe, a aldeia está vazia. chora. tem olhos cor de azeitonas e o peito aberto, em sangue. falou pela boca fechada, numa voz muda, alguma vida, pouca, que muita vida dói. já lhe ensinaram a morrer, a mãe quando tinha dez anos, o pai quando tinha quinze e o irmão quando tinha vinte e cinco. hoje gostava que alguém lhe ensinasse a vida. eu olho-a alheio, não sei do que fala, não lhe ouço a voz, nada. espreito-lhe por entre os braços algumas faltas, muitas saudades. amélia é triste. páro de caminhar de um lado para o outro, a jarra no centro da mesa carrega algumas rosas, a murchar, as pétalas caem na toalha da mesa, bordada de seda, estendida ao avesso. a vida também, sinto. amélia não sabe onde lhe dói, vejo-o, contorce-se ao fundo, enterra-se na cadeira, chora alto, grita amélia, grita. os outros fugiram do mundo, foram cobardes mas tu não. a sala é pequena para ti amélia e até eu sofro uma história que não é minha. provavelmente se soubesses a minha história não contarias a tua, mesmo que ela te caia pelos olhos. amélia, amélia. quantos dias mais serão precisos até que te apercebas? ouve, a tua dor é a minha casa. fico, quieto, não minto, ando de um lado para o outro que os passos multiplicam as palavras, empurram-me para a morte. silêncio na sala, a casa desaparece na noite a cair sobre a aldeia.

por: mar

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adeus amélia.

amélia cambaleava daqui para ali por entre o rosto branco das casas. desceu a rua, fechou-se em casa com o coração a bater-lhe nas mãos trémulas. o que tens amélia, que te fizeram? amélia chorava, amélia sorria e sem saber qual das duas emoções preferia, alternava o seu estado de ser entre alegria e tristeza. amélia tinha o alentejo preso nas pontas dos dedos, feridas que não cicatrizam, sangram. provavelmente ela nunca soube que o alentejo é uma doença terminal, a beleza do fim a esticar-se pelo corpo. ele sentou-se com ela já à tardinha, o sobreiro como companhia, falou-lhe do amor que não lhe tinha e a noite caiu-lhe à cabeça. acostumada a sofrer nada disse. ele falava-lhe com a voz desenfreada, às vezes engolia algumas palavras mas ela soube-lhe, desde o começo, todas as palavras no olhar. ele comia silêncios, faziam-lhe mal ao estômago. amélia saiu dali com as mãos enterradas no peito, no lugar do coração uma flor morta a crescer-lhe pelo corpo todo. ele ainda correu atrás dela alguns metros, depois deixou-se ficar para traz propositadamente, não queria voltar a dizer-lhe todas aquelas coisas, aquilo mordia-lhe o peito, sangrava-lhe no coração. ele morreu ali, aprendeu a morrer na companhia de um sobreiro. o que tens amélia, que te fizeram? ela não falava e a dor consumia-lhe todas as meias palavras presas na boca. ela não sorria, ela não chorava. amélia ficava, só, ficava.

por: mar

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descansa em paz júlia.

a tarde desce-te pelos cabelos e aninha-se-te ao colo. deita-se no meio dos passos que nunca soubeste dar, de encontro a alguma coisa, de encontro à vida talvez. para mim nunca foi fácil esquecer-te. trazias o inverno aos ombros e o outono vestia-te as mãos cobertas de folhas, semi-nuas, miúdas como a chuva. gritavas uma qualquer tristeza, desconhecida, frenética mas muda, gritavas uma vida a afogar-se nas lágrimas, mas ninguém sabia, ninguém sabia e todos te julgavam sã. a tristeza é uma doença que interrompe o que somos. às vezes espreito as tuas cartas e morro, também eu morro de tristeza. depois de partires aprendi a morrer e a morte é-me mais fácil que a vida. naquela tarde o corpo pesou-te mais e algumas lágrimas empurraram-no para a frente, o corpo caiu, no chão, caiu, sozinho. abandonou a casa. o teu corpo era delgado e os teus ossos morriam à flor da pele, a quebra dos movimentos comprometeu-te os gestos e já nem o adeus conseguia ser inteiro. os gestos morreram-te antes do corpo, creio. estou ferido, doente, choro. se houvesse algum modo de trazer-te de volta, qualquer coisa simples que me permitisse chorar um pouco abraçado a ti, despedir-me. nunca haverá despedida mais difícil do que aquela que fica por dar. já não quero pensar a tua morte, afogueia na minha.

por: mar

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eles mentem.

a chuva comeu-te os movimentos de menino sem dono, esperaste trinta e três anos até conseguires andar e agora, que finalmente largaste a cadeira de rodas, a chuva come-te os movimentos e a areia enrola-se-te aos pés. os teus passos são pequenos, estás a aprender andar e o teu corpo é um anúncio da noite. desces a praia com os braços no ar, alegrado por uma esperança que te desconhecia, às vezes faz sentido desconhecermos o que em nós existe, boa forma de nos surpreendermos. creio que foi o sorriso que te arrastou mar adentro, sorriso rasgado num rosto calejado de lágrimas e o mar aos pés a erguer-se corpo acima, até te levar, te erguer sobre as ondas, te pintar de sal e embarrar-te contra o cais, à tona da água, contra o convéns de um navio. o corpo não se magoou, morreu feliz. não te descobriram tristeza crónica na autópsia mas todos sabiam que sofrias dessa doença. às vezes ainda te velam o corpo às portas da campa, levam-te flores, as mulheres dos marinheiros que a tua nunca a tiveste. outras vezes mentem a tua história às portas da boca, dizem que te lançaste ao mar alto, que te mataste, eles dizem que te mataste afonso. 

por: mar

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sexta-feira, 17 de outubro de 2008

se me fizesses o favor de voltar...

é inverno e as horas descansam aos meus pés, aninhadas à lareira, passam, a tarde, a noite a vir, a madrugada e as horas a secar-me na pele dos pés, enrugadas as horas, tristes como a velhice que mata os movimentos. se ao menos fosses tu as horas ou a noite por elas, se ao menos tu te aninhasses no meu colo e ambos vissemos as horas passar sem pressa, a adormecer as tardes de inverno num abraço, se ao menos sangrasse uma dor qualquer nos olhos e morresse aqui, agora, em frente à lareira. penso. era tarde nos teus olhos que habitavam a escumalha de dores que te comia, que te brindava já noite alta nos bares do costume com uma cachaça qualquer e, ainda assim, havia uma lâmpada pendurada no tecto, a cair-te na cara, a luz. quando nos encontramos com a velhice falar alto perturba os tímpanos. em sussurro te digo agora, se voltasses, se me fizesses o favor de voltar, eu juro-te que não morria, assim sozinho, aqui, difícil é não desejar morrer. o tempo chega incerto nas costas dos lenhadores, o bosque geme, grita as montanhas todas recostadas no horizonte e a madeira contorce-se nos troncos dos pinheiros. há uma chuva miúda a entrenhar-se no esqueleto dos corpos, dos troncos, do bosque no mundo a apodrecer-te nas mãos.

por: mar

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quinta-feira, 16 de outubro de 2008

ela.

a casa não dá para lugar nenhum, presa ao fundo de mim deixa cair algumas paredes, pedaços de betão armado sobre o soalho e os pés, dela, descalços a aparecer ao fundo corredor, posso vê-los pela frincha da porta. alguém dá um grito e morre uma voz. a voz dela, talvez, a minha, não sei. morreu. eu abro a porta e sei-lhe os olhos brancos de cegueira, pousados no branco das paredes, branco sujo a apodrecer na humidade que lhe vem do telhado, o telhado a ruir numa casa em apuros. o vestido azul, pequeno, a arrastar alguns pedaços de betão consigo, pelo chão, ao lado, o urso seguro pela mão esquerda, o urso de pelúcia, de olhos arregalados, o urso tem um braço cortado mas não há sangue pela casa. ela olha, assusta-se, foge, corre como quem anda para trás e eu não consigo deixar de sorrir um pouco. aperto o casaco, as mangas são me curtas e a noite cai-me aos ombros. rasgo as cartas, as tuas, pequenos recados mandados por correio, rasgo, devagar para ter prazer no que faço. não preciso de ti, não preciso de ninguém, nem do urso, nem do vestido azul, nem da madeira do teu caixão, nem do teu corpo que é cinza no jarro à porta de casa. não choro. a porta bate e a casa cai atrás de mim, suja-me o terno. esqueço. a casa abandonada ao fundo de mim, escombros, restos. fujo. abrigo-me do que sou. 

nunca se sabe.

por: mar

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dedicatória: no verso do livro

sempre me soube desconhecido. do outro lado do bolso, da parte de dentro, abriu-se a ferida, o buraco vazio do que nunca tive, ouviu-se de dentro de mim o desespero mas esse não te permitiu parar de me olhar, parar de falar todas as coisas num alarme que dura séculos no relógio de parede. rangeu a madeira do soalho por debaixo dos pés e os teus passos foram para longe, do corredor para diante é impossível ouvir-te, a voz de dentro entre os dedos das mãos que me tentam abraçar em vão. choro. nunca soube receber um abraço e em dias como hoje é-me difícil acreditar no que quer seja, por muito que isso seja importante para mim. é entre os cigarros e a escuridão que me descubro, a aparição do que sou num espelho que poderiam ser os teus olhos se eu não os tivesse enviado para os fundos da casa. é tão difícil voltar atrás, arranhar o corredor com os pés e ir ao teu encontro, que me dói agora tudo o que não faço, tudo o que não digo ainda que isso seja suficiente para mim sei que não o é para ti. quero envelhecer contigo e aprender com o tempo a abraçar-te e a ter-te perto mesmo que vestida de noite. a minha noite não tem estrelas e o meu mar não tem sal. é de lágrimas que me reconstruo nesta casa abandonada ao fundo da rua estreita, está frio. daqui não se vê o convéns do barco, os sinos da igreja, de onde estou só se vê o abismo a arrastar-se pelo meu peito adentro, a cair-me no coração. tenho um buraco aberto por dentro do bolso, falta de sonhos, falta de ti talvez matilde, falta de um abraço. um rosto desabitado num mundo podre. 

para ti. 

por: mar

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quarta-feira, 15 de outubro de 2008

o meu coração é um iglô

cresci depressa e cedo me habituei às tuas partidas, no meio da noite lá saías pela porta dos fundos com o saco na mão, os olhos baços e alguma tristeza, ainda que superficialmente irreconhecível. às vezes o teu regresso demorava mais de duas semanas mas tu, por fim, lá voltavas entre gritos e palavras ditas tão depressa que eu não entendia. e o frio instalava-se na casa, habituada já ao inverno. ficavas alguns dias, sempre menos do que eu esperava e depois lá ias, de novo o saco seguro pela palma da mão de onde nunca vi sair outro gesto que não fosse um estalo. devo confessar-te que a tua ausência era menos bravia, doía menos, os dias seguiam-se uns atrás dos outros, imaturos, fiéis à pouca idade que tinha até tu voltares e parares o tempo no relógio contra a parede. alguma coisa estava a morrer e eu sentia. aos poucos calejei-me de dores, deixei que as traças me ocupassem o lugar do peito e comessem tudo o que ainda restava. a vida é um beco. desejei muitas vezes que fosses embora, saísses pela porta dos fundos com os móveis às costas e desaparecesses noite adentro sem deixar rasto, sonhei até algumas noites que era isso que acontecia e fui feliz confundindo a realidade com o sonho. ao contrário do que julgas perdoei-te todas as partidas, todas, inclusive aquela que chegou depois de me teres atirado pelas escadas abaixo, o que não posso perdoar-te e o que sempre me doeu foram os teus regressos, quando voltavas com a geada nas mãos e a neve nos olhos pronto a congelar a casa e os corpos que a habitavam, pronto a gelar as minhas lágrimas e a fazer de mim icebergue. hoje caem-me estalactites dos olhos e o meu corpo é como a primavera em moscovo. é isto que eu não posso perdoar-te pai, nem nunca penso conseguir fazê-lo.

por: mar

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morreu a revolução

ele gostava de saber rezar, abancar-se numa qualquer praça e pregar aos pombos. vestir um fato e uma gravata e levar com portas no nariz. gostava de saber fingir que acredita nele, naquele que descerá dos céus para salvar o mundo. ele gostava de ter fé, fé em alguma coisa mesmo que fosse nele próprio. era um céptico optimista e foi para ele que o jorge palma escreveu a canção. passeava todas as tardes pela baixa lisboeta, dentro do fato cinzento do costume, com a coleira na mão. alguns diziam que era cego, outros que era sem abrigo e ainda havia quem julgasse que era louco mas ele não se importava. ele assobiava cantigas dos tempos da revolução, aliás, ele era a revolução do abril de 74 em pleno outubro de 2008, chamava-se antónio e não gostava de andar de metro. não acreditava na evolução e os seus pensamentos vagueavam entre a morte de não sei quantos corpos num descarrilamento do metro e alguns, muitos, acidentes de carro, por isso andava sempre a pé. antónio era um homem do tempo antigo, usava botões de punho e barba densa, engraxava os sapatos todos os dias antes de sair de casa e guardava o dinheiro debaixo do colchão. nunca falava de sentimentos, nunca acreditou sequer na possibilidade da existência de tal coisa, ainda que os olhos lhe saltassem das órbitas todos os anos no feriado do 25 de abril. já contara a sua vida a todas as árvores da cidade, as únicas e verdadeiras amigas que tinha, e a sua vida resumia-a sempre àquele dia. acordou cedo para a vida, antes do galo cantar, vestiu o fato e calçou as botas prontas a estrear, depois desceu a rua pelo lado mais escuro e, já ao fundo, encontrou-se com um grupo de mais sete, daí foram até alfama onde os tanques já esperavam e o resto a história já reza. mas ele nunca soube rezar. um dia destes durante um dos muitos passeios pela baixa caiu-lhe o corpo contra o asfalto e alguns pombos alinharam-se-lhe no lombo, ninguém o socorreu. quando a noite caiu a cidade estava-lhe morta nos olhos arregalados. onde ficou a cadela antónio? morreu com a revolução.

por: mar

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terça-feira, 14 de outubro de 2008

grito: ensina-me a morrer

é de longe que me chega o riso, o último riso das moscas sobre a toalha estendida no parque, debaixo do carvalho, à sombra de um verão a cair. é de longe que te vejo a passear alguns sonhos como crianças a bailar com as folhas, as muitas que já se desprendem das árvores e é de longe que me começam a cair os cabelos à noite sobre o travesseiro e a dentadura repousa no copo de água em cima da mesinha de cabeceira, só não vejo de longe a figura distorcida no espelho, eu. é triste envelhecer. repouso os meus gestos no balcão da cozinha enquanto me chegam memórias de longe, arrastadas com o cheiro da fruta no triturador. a tua voz a fazer companhia aos pombos que sentados no fio de electricidade te escutam as histórias de amor, a tua sombra sobre o pátio a carregar um comboio de brincar, tu a brincares com a vida e ela a gostar.choro um pouco, ao fim ao cabo também sei chorar, aprendi contigo naquela noite, quando adormecemos no porão do barco e substituimos muitas palavras por silêncios até o beijo chegar, impune como o primeiro, o repetido até adormecermos com os corpos enroscados na brisa oceânica.a distância é uma árvore despida. deixo que os meus olhos fecundem algumas lágrimas, nascidas de coisas com pouco interesse, a idade apura os sentidos e transforma a tristeza em nostalgia, soma-lhe aquela saudade de sempre e prepara bem o corpo para os dias que se seguem, dias antes da morte, morte antes e após os dias. tu ainda acreditavas que o tempo corria a nosso favor e gritavas as horas sem medo, compravas as velas para o teu aniversário, sempre uma vela por ano, até às noventa e quatro que morreram em cera desfeita sobre a tua campa. às vezes gostava de voltar atrás e retirar muito do que te disse, de tudo o que vivemos o que melhor guardo é o teu silêncio, a tua voz fechada, o cerco que fazias às palavras e os teus poemas, lidos ao meu ouvido no entardecer de tantos dias. o sabor dos dias felizes inrrompe-me nas narinas e tu voltas. voltas com as pintura do dali e as musicas de chopin, com o JN adormecido no chão da sala, com as botas a tricotar esperas à porta de casa. o teu regresso não sacode as estrelas da minha noite. ensina-me a morrer francisco. aprendi muito contigo, desde o calor de um abraço a como fazer torradas sem as deixar tostar, mas nunca me ensinaste a viver sem ti.

por: mar

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conheceram-se com o sol caído na montanha atrás da casa dela, escondida entre um bosque e um monte, no minho tão trás-os-montes que o riso ouvia-se melhor em vila real que em braga. ela sorria pouco ou nada e não acreditava já no muito que se falava do amor, esse maldito que havia roído as botas do seu pai em muitas partidas com regressos agendados para o dia seguinte. ele não estava habituado a ver de longe o que de perto nunca tinha visto e a sentir com o coração o que as mãos não podiam tocar, ele foi, talvez por impulso, talvez por um querer que interrompia o tempo impedindo a noite de cair, e a tristeza dos dois caiu-lhes aos pés com o cessar das lágrimas. já tarde morderam as vozes primeiro mudas depois em gritos, soltaram os cães que traziam presos nos pés há anos, ela não viu a lua subir no céu e pintar a noite de cores mais claras e o sorriso dele, rasgado no rosto, entrou-lhe pela janela e aconchegou-se ao seu nome, ficou, ele ficou e ela quis. 

por: mar

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segunda-feira, 13 de outubro de 2008

a morta

a porta da casa era feita da madeira de um carvalho velho como os anos que as pedras das paredes tinham, as heras teimavam teias em cada frincha e a fechadura perra deixava a porta entreaberta até se ver, do alto da sala, sentada na velha poltrona, a senhora. a senhora trazia um vestido no corpo, tingido de noite sem estrelas, as suas mãos eram ossos colados uns aos outros, a carne que ainda lhe sobrava em pedaços espalhados aqui ou ali era branca como a cal das paredes da casa, agora tracejada pela humidade. a senhora não falou a tarde toda enquanto os ratos lhe mordiam as pontas dos dedos dos pés e alguns pássaros faziam dos seus cabelos um ninho, no decote da senhora descansava agora um enxame de abelhas e o cigarro, ou que dele sobrara, jazia intacto entre o seu indicador e polegar.o garçon serviu o chá às cinco da tarde e às cinco da tarde tocaram os sinos dentro do peito do homem sentado do outro lado da mesa, o garçon repousa o casaco no bengaleiro e sai, o passo desnorteado pela vingança que se serve mais fria que o chá no bule agora cheio de formigas. eram cinco e um quarto na casa por detrás do cemitério, as garças levantaram voo no topo da velha capela, deram a volta ao parque e aterraram do outro lado do rio, ouviu-se um tiro e o cheiro a pólvora espalhou-se pelas campas onde fantasmas apostavam sustos e medos.

por: mar

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das tréguas ao anoitecer.

sento-me. o sol de outubro entra-me pela casa e agoniza o sofá, estico-me aos seus pés e ouço-lhe as cores estáticas contra o veludo. é tarde fora da porta e algumas velhas passeiam a sua melancolia, a rotineira tristeza dos reformados servida num banquete com cheiros de solidão, essa solidão brejeira que cuidadosamente pinta no rosto uma certa inquietude. os cães parados no passeio erguem as patas sobre a coleira, a coleira é de seda e combina com as meias das senhoras velhas que agora param a caminhada para perguntarem as horas uma à outra, como se ambas não soubessem do fim de tarde nos sons dos pneus sobre os asfalto, e o 27 pára para as ver subir, delicado o modo de erguer o pé e pedir licença a uma perna para mover a outra, a velhice caduca qualquer bilhete de identidade. sentam-se ao fundo com a mão a segurar o stop no poste, falam da falta de movimento, da ausência de passos pela casa e da soturna quietude a morder a cauda dos ossos, aqueles que dentro da pele jogam à sueca a cada mudança de tempo. o tempo serve-se frio nas permanentes do cabelo, branco como a cal dos dias, a cair sobre os bancos do autocarro onde se aninha uma quota parte da decadência da vida. e o mesmo tempo rouba-me os minutos ao relógio que se estica pela casa. agora levanto-me para ver passar uma ninhada de pequenos homens de mochila às costas, em fila indiana, a segurem as mãos das suas progenitoras enquanto o semáforo rouba o vermelho. a vida roça-me as mãos caladas, paradas sobre o parapeito da janela enquanto o futuro se ajeita nas mãos pequenas que me acenam ao longe. alguma noite rouba os tons à tarde que já vai alta e nos barulhos surdos da cidade ainda sigo os passos do peregrino, ergue-se do canto da rua fria onde adormecera minutos antes das senhoras velhas entrarem no autocarro, acomoda agora o peito junto da fonte, o chafariz velho onde os pombos vêm beber, aninha-se ali com a noite a sugar-lhe as águas do peito, fica o sal a pesar-lhe nas costas corcundas e o vazio a ocupar-lhe os buracos negros dos olhos. algures alguém morre e os sinos batem a rebate na sé. 

por: mar

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domingo, 12 de outubro de 2008

alice.
chorou ele o nome, dela, o nome que lhe pertencia e lhe morria e lhe corria no lugar do sangue. 
e o peito repousa agora sobre um monte, abandonado à nostalgia de uma tarde de domingo, ao fundo o rio quieto, imóvel, com pedras a morder-lhe o caudal. ao longe o nome a ecoar alto sobre o vale, um grito para ninguém ouvir, mudo na copa dos plátanos, aquele nome de sempre. 
alice. 
a aguardente serve de consolo à irremediável vontade de morrer, ver-se coberto de terra num caixão feito da tristeza do nome. o fato preto a ser o simulacro perfeito do funeral. devagar chega o nome por entre as ervas daninhas, roça-lhe o braço. alice. o nome que volta do mar, sobe o rio, inverte o trajecto das águas e arrasta a corrente sanguínea para fora do corpo. cai.
alice.
cai do sexto andar do prédio escondido no bairro alto, o nome, desce as escadas de emergência com o coração a sair-lhe pela boca, o pescoço parte-se contra o asfalto, o nome vai, corre, o nome salta, ferve na órbita dos olhos que o vêem, o nome morre para sempre.
alice.

por: mar

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sexta-feira, 10 de outubro de 2008

dizer: desculpa.

queria escrever-te algumas ânsias menos profundas, algo superficial como as manhãs tristes nos meus olhos de lágrimas feitos, queria pedir-te uma espera ridícula e dizer-te: fica, sem ter medo que o teu ficar dure dias ou anos, queria conseguir explicar-te que o caminho me arrastou para longe mas que estou de volta e gaguejam-me as palavras na garganta, atrofiadas peito acima em esperas, ridículas esperas pelo tempo certo. por todas as vezes que quis ver-te de mais perto, cheirar-te os passos pelas vielas, ouvir-te a voz rasgada em pesares duradouras, mortes soltas como notas de um qualquer fado, é por todas essas vezes que te quero, a amarrotar as faltas e a tecer alguns gestos na censura de tudo o que é proibído. é por todas essas vezes que ainda espero que me perdoes e que me salves da guilhotina onde me prendeste.

por: mar

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quinta-feira, 9 de outubro de 2008

epitáfio ao meu pai

estavamos calados como se esperassemos que alguma coisa chegasse em vez da fala, alguma acção escondida por remorso no peito, quem sabe aquele abraço que há muito nos impedimos de dar, pai. tu chegaste, como sempre chegas, com o cigarro esquecido entre os dedos e o maço de tabaco no bolso da camisa, sentaste-te contra a luz e ficaste calado. os olhos estão gastos pai, consigo vê-los a rasgar daqui, rasgam-se em palavras que não dizes desde a morte da mãe, desde que o tempo para ti se transformou na sombra da madrugada contra o vidro do teu quarto, tudo está longe de ti. um cancro comeu a vida da mãe mesmo à frente dos teus olhos e eles nada puderam fazer, agora calas-te por tudo o que disseste e não devias, ficas sentado ao sol no jardim do lar como um sardão. às vezes passo por lá sem tu saberes, fico a ver-te do portão mas não tenho coragem de entrar, não gosto do que te tornaste, gostava quando chegavas a casa, atiravas o saco contra o sofá e sentavas-te a meu lado a fazer os trabalhos de casa, se eu acertava nas contas de matemática tiravas um rebuçado do teu bolso como por magia e eu ria e era feliz, até a mãe nos chamar para jantar, enquanto me contavas o teu dia.agora não te conheço pai mas gostava de te conhecer, gostava de te convidar para um café ao sábado à noite ou para assistir a um jogo do benfica, quem sabe pernoitar no saguão a falar de mulheres como fazem os bons amigos mas tu não podes pai, o meu apartamento não tem elevador e a tua cadeira de rodas ia demorar a noite toda para chegar ao terceiro andar. não sei porque te atiraste da janela da casa, não sei. o caixão estava na sala comigo vestido com o fato da comunhão, as pessoas chegavam aos pingos e acomodavam-se pela casa e tu atiraste-te da janela. o estrondo do teu corpo a embater contra as chapas de zinco do barracão, os gritos estéricos das tias e a multidão a encher o jardim e a estragar os canteiros para te socorrer, depois os bombeiros e a ambulância. não foste ao funeral da mãe. talvez seja por isso que não falas mas se for por isso podes falar, não me importo que não tenhas ido, na verdade não perdeste grande coisa, a tia amélia tapou-me os olhos quando os senhores pegaram nas pás, acho que não me deixaram ver a parte mais interessante, recordo-me apenas da expressão no rosto das pessoas, parecia a mesma que tinhamos depois de ver o titanic. às vezes choro pai, sei que me disseste que um homem nunca chora mas eu às vezes choro, porque quero chorar, chorar faz-me bem e a ti também faria mas tu não sabes chorar. chorar aprende-se e se tiveres tempo posso ensinar-te, levo-te comigo ao cemitério aos sábados à tarde, levaremos flores frescas para pôr na campa da mãe, vamos até casa, sentamo-nos no banco encostado à cerca a ler as cartas que costumavam trocar quando ainda não estavam casados, depois é só esperar que o teu coração verta água pelos olhos. as lágrimas cheiram a mar, pai. havias de gostar das lágrimas quando elas te caíssem no peito, te queimassem nas mãos, quando te entrassem pelos cantos da boca e te salgassem as palavras que não dizes. um dia havemos de ser felizes pai, um dia. sei que onde estás não precisas da tua cadeira de rodas por isso irei doá-la, espero que não te importes pai. e agora que podes voar será que podemos marcar um café no próximo sábado?

por: mar

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a morte dá-me tesão

falo da morte como quem come um pão com manteiga ao pequeno almoço, falar da morte é enfrentá-la, olhar para o relógio ver que são já horas de acordar e deixar que a vontade de dormir se intrometa entre a carne, comprometa o cérebro e me mate, lentamente, dormir é um modo de morrer, ainda que ingénuo. falo da morte enquanto engulo algum ar, respirar é o meu passatempo favorito e morrer vem logo atrás. morro todos os dias, morro no café matinal, na galinha a correr desnorteada, na mão da avó que carrega a mochila do neto, nas botas que o tropa aperta bem antes de ir para o terreno, na cirene dos bombeiros a tocar, no pátio da escola a encher, em qualquer lugar, próprio ou impróprio, eu morro e morrer dá-me tesão. morrer é uma prova imcomprovada de me sentir viva e gosto de pentear os cabelos da morte, fazer-lhe algumas festas, dar-lhe outras perspectivas. a vida são tentativas de morte prematura, maneiras aceleradas de inclausurar algumas gotas de esperança. é bom morrer, ir morrendo, como quem atravessa uma estrada fora da passadeira, correr o risco e viver no limite. é como saltar à corda ou andar de patins, duas coisas para as quais nunca tive grande jeito.

por: mar

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objecto identificado

novembro é triste 
e corto as unhas rentes 
ao longe ouvem-se uns fados
a criada traz no avental couves cegadas
eu cego-me com elas 
morro nas ruas que a cidade canta
devagar para não interromper a alegria dos outros
faz frio na rua e há quem se encolha
eu planto-me junto à fonte
há chuva a morar dentro do meu coração
novembro é triste
e a solidão é um esquema
uma maneira quase tão doce quanto desajeitada
de sentir a vida escorrer-nos com o sangue
nas veias encardidas onde a morte espera
à porta do que sou com o dedo em riste
a senhora engana-se no caminho
escorrega na encruzilhada e prende o salto
o destino é delicado como uma planta 
e bruto como um corta unhas

por: mar

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o enforcado

havia o mundo de te perdoar a morte prematura 
e eras capaz de encontrar um modo qualquer de ser feliz
ainda que a felicidade te seja imcompreensivel
ainda que o mundo te seja imperdoável
creio que foi por amor que morreste
no cimo do monte enforcado num ramo de oliveira

o amor é um laço que nos enfiam no pescoço
do corpo 

a vida não foi nem será capaz de ouvir-te
os gritos que deste só os ouvi eu dos fundos da casa
a rasgar as paredes e o soalho 
agora não há no céu anjos que te velem
que velar o corpo dos suicidas não é trabalho dos enviados de deus
ficas só como sempre foste

por: mar

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quarta-feira, 8 de outubro de 2008

como quem diz adeus.

penso: estás sentado no meio do quarto com as luzes apagadas e as paredes a ferver-te nos dedos, hoje dizes adeus, não para sempre que daqui ainda levas muitas memórias, é aqui que te sabes vivo ainda que aqui tenhas morrido tantas vezes que até lhe perdeste a conta. ficas a escutar o eco das lágrimas sobre o soalho. dizer adeus custa, parece que te dói nos ossos, na carne, como se um cão já morto te mordesse ainda o corpo todo.hoje pensas no quanto foste feliz aqui, ainda que aqui só tenhas vertido muitas lágrimas e chorado outra tanta solidão, foi aqui que apareceste a ti próprio, empurraste o teu corpo contra ti e te sentiste vivo, tão vivo que desejaste estar morto, ao ponto de te matares noite dentro em poemas que escreveste na pressa de uma tristeza qualquer.e as tristezas conheces tu bem que é delas que se enche o teu tempo. ficas a fumar os últimos cigarros, do cheiro do tabaco preso em todos os móveis chegam-te recordações de madrugadas doentes, o cancro dos dias a sequestrar-te a esperança que ainda tinhas, não acreditas em nada agora e se o fantasma da tua mãe te aparecesse à frente morrias nele, sempre, que há fantasmas que nos perseguem tanto que nos levam à morte.

por: mar

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entardecer.

por não saber da cor dos teus olhos no rio postos, ainda julgo poder dar com eles ao entardecer, aninhados no horizonte que me chega do fundo da água quando o sol a toca de mansinho, tão quietos que para agarrá-los teria de me deitar sobre o rio, esticar os braços a tal ponto que estes fossem agora maiores que a distância que nos separa.a distância entre os nossos passos é segura como uma corda. espero, ainda, sempre o entardecer com os meus olhos postos no horizonte sobre o leito do rio, fico assim até aparecer a cor que julgo ser a dos teus olhos e agora deito-me, de barriga para o ar, espero que as nuvens me tomem ao colo e me levem para longe, tão longe que te possa beijar com os olhos.

por: mar

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perdeste o amor.

às vezes passas por mim com o passo acelerado como se tivesses perdido alguma coisa e agora te restasse a pressa de a encontrar, perdeste o amor, há muito tempo já, quando os rios ainda eram preenchidos por água transparente, quando pedir desculpa não custava tanto. e passas com o saco na mão pequena, seguro pelos dedos que já conheceram a dor da minha cara, eu sorrio, sempre, mas tu não vês, vais preocupada com o que perdeste, tão rápido que nem reparas que o amor está ali ao lado, sentado na esquina da rua como de costume à espera, de fato castanho vestido com o chapéu que lhe ofereceste pelo dia de são valentim há uma dúzia de anos atrás, a acenar algumas recordações que ainda vivem. tu não vês, não vês e choras com os olhos postos ao fundo, onde a rua acaba como se o amor ali também tivesse acabado, tivesse por ventura embarcado num navio e seguido mar abaixo, mas não, não julgues que se afogou em mar alto que é a terra que o conhece ainda, que lhe sabe ouvir os passos ocos na calçada, sem ti.eu fico sempre à espera na esquina da rua, a ver o teu corpo lançar-se rua abaixo num tom apressado, tão rápido que os teus pés parecem não tocar o caminho e voas, parece que voas como se as gaivotas te levassem e é tudo o que me resta agora, depois de morto, ver-te passar sem te encontrar as mãos, no toque, o beijo, sem saber porque te bate ainda o coração dentro do peito se o amor se perdeu, se o amor já partiu e o tempo é agora corridio. a que te sabe ainda a vida?

por: mar

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terça-feira, 7 de outubro de 2008

à imagem de nossa senhora

um dia hei-de matar-me, atirar o meu corpo às feras e vê-lo morrer comido por elas ou ateado em fogo no meio da praça, em frente a tua casa que eu quero que assistas de perto à minha desgraça. há-de ser falada a minha morte como é falada a minha vida, triste, esta que me reservou o tempo que passa, tão quieto que ninguém dá conta dele nem o vê passar. os anos contam-se pequenos, em dias de calendário, meses à solta nas folhas coladas por debaixo da imagem de nossa senhora, essa catraia que não dá de comer aos pombos e que manda os velhos do restelo, que podiam estar a jogar à sueca, fazer o trabalho por ela. e é esta a vida que nos resta, pedaços de trigo arremessados aos pombos na praça em frente a tua casa, essa mão gasta e suja, preenchida de rugas, mão a pertencer a um braço reformado onde o trabalho já não chega, braço a representar o movimento do corpo todo dorido, dorido de não fazer nada ou de fazer tudo, depois da velhice o que nos compete é a derrota, o cárcere de nos ver vencidos. um dia hei-de matar-me e fazer jus a estas palavras, hás-de ver o meu corpo cair morto no chão da praça em frente a tua casa, assustar de tal ponto os pombos que eles fugirão para parte incerta e será então dado um fim justo aos velhos do restelo. 

por: mar

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quereres


quero viver contigo, estender-me à porta da casa que é nossa, voltada para o mar, de costas para o bosque e ficar, envelhecer, morrer ali. quero deitar-me contigo e descobrir o teu corpo junto ao meu, adormecer a noite com a cabeça no teu peito, tornar nua a minha solidão e ver de longe a tua até que me deixes chegar mais perto. quero que faça tarde e cedo nos relógios parados pela casa, que o tempo será surdo mudo nas nossas mãos dadas, quero tudo, devagar que a vida é inteira e grande como o amor que te tenho. quero fugir contigo para um qualquer lugar nosso, atrás do sol posto, onde os  olhos e as bocas se beijem como se não houvesse ontem ou amanhã, um lugar parado na linha do tempo onde o espaço é tão pouco que os corpos se tornem um. quero ser o mar e o bosque contigo e estender a casa pelo mundo, o pequeno mundo que nos habita. 
para sempre, se o sempre não te incomodar. 

por: mar

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segunda-feira, 6 de outubro de 2008

amor inoportuno

um dia pela tardinha desceu a rua pelo lado da casa dela, viu-a do lado de dentro com o avental vestido a pôr a mesa e ficou ali, esfriou com a noite a cair-lhe pelo corpo, a imagem dela assim vestida dava-lhe mais vontade de a convidar para sair, quem sabe casar. ele gosta dela mas nunca lho disse, fica ali, à socapa, especado na rua, às vezes encostado ao poste de alta tensão à espera que ela se chegue à janela para lhe conhecer melhor os contornos. e até tarde ouve-se a música da solidão, a rua é triste com os olhos dele a perderem-se na luz apagada no quarto da casa, ele foge então com o rabo entre as pernas, desce a rua pelo outro lado com a cara inclinada para o chão, mas o que ele não sabe é que do lado de dentro das cortinas ela adormece com a cara contra o vidro, à espera que ele a convide para fugir.

por: mar

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penalização do aborto

doem-lhe as mãos de apertar as memórias, de esmagar as recordações, muitas, as que tem dela, dela e do seu rosto cravado de desassossegos, de imagens subterâneas, de corpos franzinos, pequenos como os abortos que ela fazia na fronteira, quando o aborto ainda era ilegal. doía-lhe o corpo todo enquanto a chuva lhe caía pelo corpo abaixo às portas da sua campa.
(prometi a mim mesma que não escreveria sobre a chuva, escrever sobre a chuva num dia de sol é ser inovador, escrever sobre a chuva num dia de chuva é ser banal, não querendo ser banal acabo por sê-lo mas não me pesa nada, nem a consciência de uma falsa promessa)
quando ela morreu ninguém chorou, nem ele, chorar por ela não fazia sentido, todos, os poucos que foram ao funeral, choraram os quatro corpos pequenos, mortos dentro do seu ventre, a apodrecer como bichos num buraco cavado algures perto da fronteira, sem nome, sem vida, sem colo, sem altar, sem ninguém que os vele. hoje ele chora por ela, pela falta que lhe fazem os seus olhos manchados de noites sem estrelas, pela saudade que lhe atravessa as estradas do corpo para lhe habitar as veias, para lhe correr no sangue, com o sangue, aquele que morreu com os outros corpos, os deles, os pequenos enterrados perto da fronteira, onde não chegavam as preces ou as rezas, onde havia bichos a escavar a terra, a comer os corpos mortos que nunca souberam a que sabia a vida.

por: mar

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retrospectiva

sentou-se. calado esperou a manhã como quem espera pelo dia da morte, já sabia que viria a ser esta a sua última espera e para ele esta era a mais sentida. ficou. as pernas cruzadas debaixo da mesa onde o pequeno almoço seria servido pelas sete horas, a mesa era pequena e havia meio corpo que lhe não cabia nela mas ele pouco se importava, com o relógio parado no pulso descansa o olhar nas fotografias que adormecem nas paredes brancas da cozinha. é triste morrer sozinho, pensa enquanto algumas lágrimas lhe sequestram os olhos. hoje, ali sentado ele descobre que haverão sempre memórias a vencer a morte, lembranças de alguns rostos abandonados para lá da porta da entrada da casa que nunca foi sua. vida.

por: mar

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à morte na noite.

às tantas morro.

quando a noite perguntar se as horas esperam à porta da boca o beijo, responde-lhe que a espera é a melhor amiga da esperança e se um dia ela te disser que eu fui para outra porta, derruba-lhe algumas estrelas, tenta sequestrar-lhe a lua, há-de acabar por confessar que foi ela que me levou.

às tantas o corpo morre, devagar no parapeito de uma janela, enquanto esperava que os sinos tocassem e o antecipassem a cair mundo abaixo. às tantas já passa da hora de serviço e o sacristão dorme sossegado, enquanto o sino que deveria tocar morre com o corpo estatelado contra o chão da praça. talvez alguém grite, por muito, por tanto que deveria ter dito, talvez alguém chore, baixinho, a vida que deveria ter tido e talvez tu passes, no meio da noite, tu vejas o corpo e te sintas morto, talvez. talvez a noite te diga que fui para outra porta.

por: mar

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quinta-feira, 2 de outubro de 2008

disse: mãe

mãe
há duas coisas que preciso dizer-te 

entre a chávena repousas a mão
fria a mão, a tua, a que te amputaram à nascença.
o cotovelo gasto preso ao pó da mesa,
longe do braço,o teu, o que nunca foi perto. 
 
há duas coisas que preciso dizer-te
mãe

duas mortes são o teu pequeno almoço
bem como um assalto à mão armada. 
notícias da tua manhã, nossa. 
ainda estás longe.

mãe. 
 
tu gritas
tu levantas a mesa 
tu choras um pouco
tu foges à pressa

mãe
há duas coisas que preciso dizer-te

a rua a servir de casa aos teus pés desesperados
fracos os pés, os teus, os que agora se encostam à berma.
a mão repousa ainda sobre o teu peito,
fria a mão, a tua, a que te amputaram à nascença.

grito: mãe. eu vou embora e não volto. 

por: mar

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quarta-feira, 1 de outubro de 2008

fico a ver o teu corpo cair do sexto andar, 
cai como quem voa, 
livre para voar, 
preso para cair, 
o corpo. 
há um ponto morto entre o chão e o céu
é aí que páras
e acenas o último adeus.

por: mar

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o dia da minha morte

não me digas já que morri, deixa-me ver-te mais de perto, o corpo vestido de luto, o preto a ficar-te bem, a barba por fazer e os olhos cobertos de lágrimas. o dia da minha morte é vagaroso, a tarde contou todos os minutos no relógio velho da sala, à cabeceira do meu caixão algumas flores murcharam, tudo murcha na vida com a pele, tudo depois de murcho acaba por morrer. mas não me digas já que morri que ainda quero ter tempo de mudar a água do aquário e cortar as unhas dos pés.a tarde cai por detrás da casa e as cortinas deixam entrar ainda um pouco de sol, é dia, o último dia que vejo antes de morrer ou depois de morta, os meus olhos estão fechados mas sinto o calor da luz nas minhas mãos, colocaram-me as mãos em cima da barriga, nunca conseguirei adormecer assim.tu ajeitas-me o cabelo e eu ajeito-te a dor depois, a jeito, congelo-te as lágrimas nos olhos, promete-me que não voltas a chorar e depois podes dizer-me que morri. 

por: mar

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corro para não me sentir só, 
o corpo a rasgar o espaço, 
a quebrar o tempo. 
corro um mar em apuros aos saltos no peito 
e elevo-me como se tivesse asas, 
ou como se um pássaro me levasse. 
às vezes tenho saudades de ser feliz e corro, 
talvez para me esquecer do que me lembro sempre, 
talvez para me esquecer de mim ainda que me não lembre nunca. 
corro. 
a areia prende-me os pés mas mesmo parada 
continuo a correr contra a vontade de me manter perto. 
de longe será mais fácil
esta dor entre os braços de água que me envolvem.
corro para me abandonar,
o corpo a cair devagar, devagarinho, 
que há tempo de sobra para morrer.

por: mar

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um dia quis crescer nos teus olhos mortos

o teu corpo é um alarme de vésperas
um calafrio a meio das costas
qualquer palavra dita agora seria imcompreensivel
alguém me tomaria por desléxico
as tuas mãos são brancas como a cal
tão leves como o silêncio que carregas
à boca de um coração inundado
talvez te desperte um chegar mais perto
ou talvez nada consiga despertar-te
talvez tenhas morrido
e o teu corpo seja a antecipação de
qualquer coisa não muito longe daqui

por: mar

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