segunda-feira, 6 de outubro de 2008
penalização do aborto
doem-lhe as mãos de apertar as memórias, de esmagar as recordações, muitas, as que tem dela, dela e do seu rosto cravado de desassossegos, de imagens subterâneas, de corpos franzinos, pequenos como os abortos que ela fazia na fronteira, quando o aborto ainda era ilegal. doía-lhe o corpo todo enquanto a chuva lhe caía pelo corpo abaixo às portas da sua campa.
(prometi a mim mesma que não escreveria sobre a chuva, escrever sobre a chuva num dia de sol é ser inovador, escrever sobre a chuva num dia de chuva é ser banal, não querendo ser banal acabo por sê-lo mas não me pesa nada, nem a consciência de uma falsa promessa)
quando ela morreu ninguém chorou, nem ele, chorar por ela não fazia sentido, todos, os poucos que foram ao funeral, choraram os quatro corpos pequenos, mortos dentro do seu ventre, a apodrecer como bichos num buraco cavado algures perto da fronteira, sem nome, sem vida, sem colo, sem altar, sem ninguém que os vele. hoje ele chora por ela, pela falta que lhe fazem os seus olhos manchados de noites sem estrelas, pela saudade que lhe atravessa as estradas do corpo para lhe habitar as veias, para lhe correr no sangue, com o sangue, aquele que morreu com os outros corpos, os deles, os pequenos enterrados perto da fronteira, onde não chegavam as preces ou as rezas, onde havia bichos a escavar a terra, a comer os corpos mortos que nunca souberam a que sabia a vida.
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