sábado, 29 de agosto de 2009

pediu-me então que descalçasse os olhos e, como quem espera alguma coisa, pôs-se a cambalear o corpo para a frente e para trás. não consegui esquecer-me desta imagem, do seu semblante póstumo, o seu perfil a desfocar-se perante a nitidez do meu silêncio. acreditei que fosse um anjo, talhado a ouro, sobre o altar posto, à espera que um qualquer a viesse cobiçar e lhe roubasse também com os olhos, o que eu lhe roubava agora, a juventude. parecia-se com alguém que eu já vira, anos atrás, creio, recordo agora, a face destituída de expressões, história acabada de que já nem me lembrava não fossem tão grandes as semelhanças entre esta e a outra, aquela que me viria a cobiçar o coração. e no peito, irrequieto, abriu-se de novo a ferida, o buraco de onde um coágulo sanguíneo saiu sem eu contar. ainda com o peito aberto, assisti à sua morte. perigosa é a morte daquela que amamos, tão certa como a nossa própria morte, a que nos espera depois de braços abertos nas ruas da solidão.

por: mar

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a romper por certo a quietude mórbida do texto, ela estreita o ar dentro dos pulmões e com desenvoltura prende as palavras, todas, no canal que liga a boca ao estomâgo, a que os entendidos chamam esófago. é por certo este o momento de fumar um charro, fumá-lo até à epiderme do dedo indicador e esperar ver a mão ser comida por memórias felizes, imagens que não lhe pertencem de um tempo que não viveu. agora que a pressa se acomoda no seu colo, é tempo de fugir, às tantas esquece-se do seu nome, o seu ou qualquer outro nome que lhe chamam quando a vêem passar. e tantas vezes passa pelas mesmas ruas que até as pedras, ou os recantos comidos dos passeios, lhe sabem de cor os silêncios, lhe conhecem os gestos assimétricos, a forma incauta de andar como se corresse em direcção a alguma coisa desesperante. paralelamente a isto, põe-se a fitar o horizonte como se o comesse, e fossem das suas formas feitas as suas esperas. não há sentimento que a não encontre só, não há nada que a não faça triste, chorar é a única certeza que lhe trazem as noites que duram dias e dias e dias de pálpebras abertas. verá então, por certo, que o tempo é o exacto momento em que se perde do mundo, ou o mundo se perde dela e, no entanto, todos os espaços lhe parecem familiares, como se a memória selectiva que lhe pertence já lhe ocupasse todas as recordações que tem ou nunca teve. vem sentar-se aqui, ao pé de mim, como uma árvore despida, com o frio invernal a ocupar-lhe os lábios cerrados. vem falar comigo, com aquele olhar, que não consigo esquecer, de quem tudo perde sem ter culpa e ainda assim sente que é esta que lhe prende os movimentos sempre que quer avançar. recuar é o seu destino, e é com os braços e as pernas presas ao passado que ela caminha em círculos, ladeada pelos sonhos que não consegue realizar.

por: mar

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quarta-feira, 26 de agosto de 2009

a solidão de dois passos pode pesar mais no coração do que uma vida inteira. é assim que me sinto sempre que me afasto, costas com costas, mãos atrás destas, a pedir aos olhos para não chorar a prematura despedida dos afectos. é assim que me sinto quando te deixo, à boca de todas as ruas, e de tantas vezes te deixar temo que um dia ao regressar te não encontre. as pessoas mudam de lugar como quem muda de roupa, as pessoas mudam de pessoas e eu não quero mudar de ti, sair daqui. as pessoas preferem a solidão de dois passos a um sorriso, eu não. talvez tenha perdido esse jeito de ser pessoa, talvez tenham sido as pessoas a perder o jeito de serem como elas próprias. não sei. gostava apenas de não ter de te deixar tantas vezes.

por: mar

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segunda-feira, 17 de agosto de 2009

racionalizar-te com a ponta dos dedos
em pele viva: creio que é possível.
acidentalmente ver cair o corpo todo,
desfazer-se em ossos, apodrecer
a cadência de um suspiro
até me morrerem todos os timbres de voz.
e morrer na poesia dos teus gestos
parados sobre a memória, gasta
dos dias em queda num calendário velho:
morrer. dentro de mim um ofício de inquietações
e, no meio deste poema, 
tu a seres o buraco aberto, pronto,
à espera do meu caixão.

por: mar

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espero-te à porta com o coração nas mãos para te entregar. da minha história não falam estas paredes, ainda tão puras de mim, ainda tão brancas que nem o negrume da noite lhes traz um pouco do que tenho para te dar. quero que saibas que já há algum tempo espero por ti, pés adentro do corpo, alguma solidão entre as rugas das mãos e esta tão longa e dura melancolia. falar-te-ei da sombra crepúscular dos meus afectos, escrever-te-ei poemas entre os poros e vida fora dedicar-te-ei o meu silêncio, em penas ou prantos ou outros gemidos, entre noites mal dormidas e não jeitos de te amar. perdoa-me por não saber dar-te, de outro modo, o que me resta do que sou. ao passado deixo estas memórias, invioláveis, tão imperfeitas como as feições do meu rosto ferido de lágrimas. ao presente e ao futuro deixo os nossos corpos dados um ao outro, na mais perfeita sintonia de que já alguma vez se ouviu falar. 

por: mar

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à costumeira melancolia entrego as memórias que de ti tenho. fazem-me falta os teus braços a segurar a noite pendente sobre o meu coração, faz-me falta qualquer coisa que te pertença, mesmo que seja o teu não jeito de me dizer coisas bonitas sempre que tas peço. é tão natural já ter-te na minha vida que estar sem ti se parece com o prematuro fim da primavera. e eu que gosto tanto do outono abandono-me à queda de algumas folhas. 

por: mar

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sexta-feira, 14 de agosto de 2009

sento-me aqui, a sala é rectangular e tem, mais ao menos ao centro, uma mesa com cinco cadeiras por baixo e uma fruteira, quase vazia, por cima. nesta sala fui mais ou menos feliz e inteiramente triste, assisti à morte da minha esperança nesta sala, assisti ao passar dos anos, devagar, porque os anos por aqui passam como a brisa, lenta, por entre a copa das árvores. daqui ouve-se ao longe, ao fundo do horizonte, onde caem as montanhas, o rio tâmega. recordo os tantos verões que passei nas suas margens, pés dentro d'água, cana na mão, à procura de barbos ou trutas; o meu pai quieto a meu lado, desenhava com a sediela as nuvens, ou o reflexo delas na água parada. os verões aqui são quentes e secos, os campos enchem-se subitamente de frutos e os homens e mulheres encolhem-se à sombra, falam da vida, que daqui parece intemporal. hoje é verão e há uma leve brisa a cortar o silêncio da madeira do tecto, as moscas entram pela porta principal, dão a volta à sala e saem pela porta dos fundos, vêm num zumbido e vão noutro. chegam-me cheiros de heras a subir os muros, de flores selvagens a cair destes, de amoras maduras a pender das silvas, chega-me a terna recordação dos traços finos, das rugas da minha avó, à espera nesta casa que assistiu ao envelhecimento da pele, com a mesma decompostura com que eu assisto ao envelhecer do dia. 

por: mar

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sexta-feira, 7 de agosto de 2009

congela esta imagem: estão quatro braços ao redor de dois corpos, cada par num só. um deles suavemente envolvido num outro, e os outros dois, logo acima da cintura, simplesmente a olharem-se. um diz qualquer coisa bonita rente à linha do queixo e logo os outros três se aconchegam um pouco mais. e das quatro mãos aos quatro braços presas duas se dão, cinco dedos adormecem noutros cinco, e dois braços em dois braços e dois corpos num só corpo.

o abraço.

por: mar

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domingo, 2 de agosto de 2009

ao coração, qual trevo de quatro folhas marejando a sorte ao vento, nada digo. a não ser o pesar de algumas lágrimas, sucumbidas à face cerrada de todas as flores. às vezes creio que pode haver primavera dentro e fora do peito, que as estações não têm de ser platónicas como o amor, que pode doer para sempre muito ou cada vez menos. a ti deixo as minhas folhas, as raízes levo-as comigo. perdi o jeito de ser árvore, o jeito de ser qualquer elemento desta natureza, o jeito de ser outra coisa que não esta. hoje vivo do que nunca fui, do que nunca de mim quiseram: o amor.

por: mar

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