quarta-feira, 22 de abril de 2009

subitamente recordo-te as feições entrelaçadas como os dedos das mãos. calo-me, falar de ti é comer as palavras, uma por uma, até chegar ao incauto silêncio de que sempre foram feitos os nossos afectos. pareces serena, como da primeira vez, de fronte curvada para o chão e com os cabelos soltos, ao sabor de um vento breve de norte. estás ausente, desfocada, e não é esta imagem que pretendo recordar, nem ela, nem os teus passos fugidios, a correr no sentido oposto ao meu, ainda que na mesma direcção. calculo que não estejas feliz. ouve, eu sei que não estás feliz joana e ainda assim quero mostrar-te os silêncio que ainda aqui moram, do lado esquerdo do peito, num buraco negro a que costumam dar o nome de coração. dá-me um sorriso hoje, um estrelado, que seja capaz de iluminar a minha noite, fazê-la parecer mais simples, mais fácil de passar, quem sabe alterar o tempo num simples grito dado à varanda. quem sabe um dia regresses, joana, com os teus cabelos soltos e a face entrelaçada como os dedos das tuas mãos, sempre, quem sabe. por agora reconforto-me à imagem dos teus gestos, sempre delicados no toque, e penso muito em ti, agora penso muito em ti e há silêncios, que duram a noite toda, que me comem por dentro, a raiz do corpo.

por: mar

1 comentários





terça-feira, 14 de abril de 2009

pergunto-te: estás cá? não: dizes-me: estou lá, onde se atracam os navios com ancoras maiores que braços. e eu calo-me, eu que nunca deveria ter falado. gostava de saber que ancoras prendem a tua língua, quais os navios que se atracam à entrada da tua boca. gostava ainda, se possível, de salgar-me de ti até se me tornar o corpo apenas pele encurrilhada de silêncio. construir-te um diálogo é sempre difícil quando a noite te desmembra,talvez em ti não hajam faltas, saudades moribundas a morder-te, como a mim, os ossos todos. pinto-te de lágrimas e manhãs, sempre incertas, porque os sentimentos são abraços sem cais.

por: mar

3 comentários





segunda-feira, 13 de abril de 2009

nunca foste de ninguém e estranhas-me no olhar, quieto sobre o chão do quarto. quando te apercebes estás sozinho, aliás, não és feito de outra coisa que não seja a longa e enclausurante solidão. todos os teus membros, os teus músculos, são feitos de uma inexactidão, um contratempo, um avesso. tu és dos que acendem o cigarro e fumam o isqueiro. talvez por isso me renda, incompreensivelmente, às palavras que já não dizes, as que comes, porque até o trajecto das palavras te é contrário, em vez de falares para fora, falas para dentro.

por: mar

1 comentários





sexta-feira, 10 de abril de 2009

entre os rostos procuro o teu, deserto. todas as flores silvestres gostam de calor: penso, enquanto desenho a tua face sobre o balcão. quero um gole e o fumo de um cigarro, um gentil, que não arda nos olhos. quero o paraíso e uma virgem extra como o azeite, quero um pedaço de caminho e um traço contínuo, não gosto de ser ultrapassado. tu és o traço, o traço leve, súbtil no impacto do lápis sobre a toalha, és esta delicadeza de me saber a habitar o prelúdio e ainda assim empurrar-me à inquietação. na perpendicular do meu olho esquerdo um casal divide um gelado, uma metade, tudo é às metades no amor. e, sob o olhar atento da plateia, ele segura-lhe a mão entre a sua, direita, e segreda-lhe ao ouvido qualquer coisa irremediável, qualquer coisa que serve para a vida inteira, qualquer que dura a eternidade de algumas metades. quero gritar-lhe: foge, mas morre-me a palavra na garganta, como um vómito à espera, pronto. e já nada me incomoda, nada já percepciono, a não ser a costura da toalha onde me sorri o teu rosto, aberto, à espera que lhe entre pela boca e lhe morra algures no peito, entre as costelas, num membro que não ouso citar. quero apenas não lembrar-te tantas vezes, nem tantas vezes ter esta vontade de te segurar a mão e segredar-te ao ouvido qualquer coisa irremediável e para sempre. mas o sempre é tão longe meu amor, o sempre é tão longe e eu sou tão perto.

por: mar

2 comentários





quinta-feira, 9 de abril de 2009

as partes partiram-se, e a metade, de quem são agora feitas, é do tamanho de uma lágrima. à partida tudo é permitido, assim como ao ocaso, e pode faltar tempo, espaço, pode faltar vontade, mas a lágrima que tem de ser chorada há-de encontrar sempre um canto. tenho saudade de ter-te por perto, como às lágrimas, saudades de te chorar rosto abaixo, lentamente e ficar aqui a morder a tua falta, magoa, dói em sítios que eu sei lá. porque há lugares, feitos de lágrimas, no meu corpo, lugares teus, lugares de ninguém.

por: mar

0 comentários





segunda-feira, 6 de abril de 2009

eu substimo-me e abstraio-me de alguns passos menos precisos, porque o verbo precisar é indiferente. eu cativo-me e irregularmente afinco as unhas entre os nós das mãos, chamo-me um substantivo disconexo e fujo. fugir é sempre mais fácil quando se fecham as mãos. eu não me atingo, às vezes julgo ferir-me mas as balas passam ao lado da pele. por certo sofro, como quem sabe que é preciso um sorriso e ainda assim não consegue verbalizá-lo na primeira pessoa do singular. eu, que do alto da minha inocência, ainda morro feliz, hei-de um dia, sucumbir às muitas faltas que me faço.

por: mar

0 comentários





quinta-feira, 2 de abril de 2009

escrevo: os erros são tentativas de punir a vida por nos ter criado filhos do mesmo umbigo. hoje quero arrancar-te os braços e atá-los ao meu corpo, um abraço é urgente quando me sinto só, e é sempre urgente um abraço quando não há outra forma de morrer, a não ser esta decomposição lenta. e hoje, que é dia de todas as mortes, quero enlutar-me de ti, enviuvar-me de gestos e, pela noite fora, adormecer o amor dentro do peito. é certo que estar vivo é uma antítese mas até as antíteses conseguem ser contraditórias, por isso fico.

por: mar

0 comentários





eu tento, eu procuro, falar de ti como quem te chama, como quem te berra, te grita, como quem te afoga, em lágrimas te desfolha, te mata entre o peito, aberto em ferida, sem crosta. eu sei que há alguma coisa errada neste sentido, talvez não ter absolutamente sentido nenhum, talvez estar disposto de outra forma, noutra direcção. e sei que andar de cócoras magoa os joelhos e, ainda assim, ando, insisto, persisto, subsisto à dor, criei o hábito de nada já me doer, de ter os joelhos à boca dos pés, e as mãos serem empurrões certos. eu já não me existo, apenas e só me expiro, com o passar do tempo, com o encolher do espaço, me ardo, me transformo em cinza e, de fora, me recomponho, teço de expressões simples o meu rosto e faço-me outra, a mesma, a que ao falar de ti se dói inteira.

por: mar

1 comentários