quarta-feira, 15 de outubro de 2008

morreu a revolução

ele gostava de saber rezar, abancar-se numa qualquer praça e pregar aos pombos. vestir um fato e uma gravata e levar com portas no nariz. gostava de saber fingir que acredita nele, naquele que descerá dos céus para salvar o mundo. ele gostava de ter fé, fé em alguma coisa mesmo que fosse nele próprio. era um céptico optimista e foi para ele que o jorge palma escreveu a canção. passeava todas as tardes pela baixa lisboeta, dentro do fato cinzento do costume, com a coleira na mão. alguns diziam que era cego, outros que era sem abrigo e ainda havia quem julgasse que era louco mas ele não se importava. ele assobiava cantigas dos tempos da revolução, aliás, ele era a revolução do abril de 74 em pleno outubro de 2008, chamava-se antónio e não gostava de andar de metro. não acreditava na evolução e os seus pensamentos vagueavam entre a morte de não sei quantos corpos num descarrilamento do metro e alguns, muitos, acidentes de carro, por isso andava sempre a pé. antónio era um homem do tempo antigo, usava botões de punho e barba densa, engraxava os sapatos todos os dias antes de sair de casa e guardava o dinheiro debaixo do colchão. nunca falava de sentimentos, nunca acreditou sequer na possibilidade da existência de tal coisa, ainda que os olhos lhe saltassem das órbitas todos os anos no feriado do 25 de abril. já contara a sua vida a todas as árvores da cidade, as únicas e verdadeiras amigas que tinha, e a sua vida resumia-a sempre àquele dia. acordou cedo para a vida, antes do galo cantar, vestiu o fato e calçou as botas prontas a estrear, depois desceu a rua pelo lado mais escuro e, já ao fundo, encontrou-se com um grupo de mais sete, daí foram até alfama onde os tanques já esperavam e o resto a história já reza. mas ele nunca soube rezar. um dia destes durante um dos muitos passeios pela baixa caiu-lhe o corpo contra o asfalto e alguns pombos alinharam-se-lhe no lombo, ninguém o socorreu. quando a noite caiu a cidade estava-lhe morta nos olhos arregalados. onde ficou a cadela antónio? morreu com a revolução.

por: mar


1 comentários:

Anonymous Anónimo escreveu...

quando o sangue não tem cor, a cidade é pior que cinzenta: são todas as cores inconscientes que se cruzam sem nunca se tocarem.

15 de outubro de 2008 às 22:38 

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