quinta-feira, 9 de outubro de 2008

epitáfio ao meu pai

estavamos calados como se esperassemos que alguma coisa chegasse em vez da fala, alguma acção escondida por remorso no peito, quem sabe aquele abraço que há muito nos impedimos de dar, pai. tu chegaste, como sempre chegas, com o cigarro esquecido entre os dedos e o maço de tabaco no bolso da camisa, sentaste-te contra a luz e ficaste calado. os olhos estão gastos pai, consigo vê-los a rasgar daqui, rasgam-se em palavras que não dizes desde a morte da mãe, desde que o tempo para ti se transformou na sombra da madrugada contra o vidro do teu quarto, tudo está longe de ti. um cancro comeu a vida da mãe mesmo à frente dos teus olhos e eles nada puderam fazer, agora calas-te por tudo o que disseste e não devias, ficas sentado ao sol no jardim do lar como um sardão. às vezes passo por lá sem tu saberes, fico a ver-te do portão mas não tenho coragem de entrar, não gosto do que te tornaste, gostava quando chegavas a casa, atiravas o saco contra o sofá e sentavas-te a meu lado a fazer os trabalhos de casa, se eu acertava nas contas de matemática tiravas um rebuçado do teu bolso como por magia e eu ria e era feliz, até a mãe nos chamar para jantar, enquanto me contavas o teu dia.agora não te conheço pai mas gostava de te conhecer, gostava de te convidar para um café ao sábado à noite ou para assistir a um jogo do benfica, quem sabe pernoitar no saguão a falar de mulheres como fazem os bons amigos mas tu não podes pai, o meu apartamento não tem elevador e a tua cadeira de rodas ia demorar a noite toda para chegar ao terceiro andar. não sei porque te atiraste da janela da casa, não sei. o caixão estava na sala comigo vestido com o fato da comunhão, as pessoas chegavam aos pingos e acomodavam-se pela casa e tu atiraste-te da janela. o estrondo do teu corpo a embater contra as chapas de zinco do barracão, os gritos estéricos das tias e a multidão a encher o jardim e a estragar os canteiros para te socorrer, depois os bombeiros e a ambulância. não foste ao funeral da mãe. talvez seja por isso que não falas mas se for por isso podes falar, não me importo que não tenhas ido, na verdade não perdeste grande coisa, a tia amélia tapou-me os olhos quando os senhores pegaram nas pás, acho que não me deixaram ver a parte mais interessante, recordo-me apenas da expressão no rosto das pessoas, parecia a mesma que tinhamos depois de ver o titanic. às vezes choro pai, sei que me disseste que um homem nunca chora mas eu às vezes choro, porque quero chorar, chorar faz-me bem e a ti também faria mas tu não sabes chorar. chorar aprende-se e se tiveres tempo posso ensinar-te, levo-te comigo ao cemitério aos sábados à tarde, levaremos flores frescas para pôr na campa da mãe, vamos até casa, sentamo-nos no banco encostado à cerca a ler as cartas que costumavam trocar quando ainda não estavam casados, depois é só esperar que o teu coração verta água pelos olhos. as lágrimas cheiram a mar, pai. havias de gostar das lágrimas quando elas te caíssem no peito, te queimassem nas mãos, quando te entrassem pelos cantos da boca e te salgassem as palavras que não dizes. um dia havemos de ser felizes pai, um dia. sei que onde estás não precisas da tua cadeira de rodas por isso irei doá-la, espero que não te importes pai. e agora que podes voar será que podemos marcar um café no próximo sábado?

por: mar


3 comentários:

Anonymous Anónimo escreveu...

há memórias que não voam. nem sequer são a brisa imaginada num caule a oscilar. há memórias que são sempre carne e caminho que nunca queríamos ter tomado*

9 de outubro de 2008 às 21:35 
Blogger Sonita escreveu...

tão triste, mar, tão triste..

10 de outubro de 2008 às 22:21 
Blogger Amor amor escreveu...

Estou completamente sem palavras...nem consigo imaginar essa dor tão bem expressa em palavras...

Beijinhos doces cristalizados!!! :o*

11 de outubro de 2008 às 20:01 

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