sábado, 31 de maio de 2008
o galo cantou três vezes mas os meus olhos arregalados não quiseram ouvi-lo, choraram sem medo a perturbar a manhã que se levantava devagar lá fora. senti-a bater três vezes no vidro mas não quis prestar-lhe atenção, fiquei ali de peito calado, olhar arregalado sobre o tecto branco, as mãos repousavam em cima da barriga de um corpo deitado que chorava desesperado sem expressão na face. chego hoje aqui com um sorriso rasgado e a cruz na varanda pousada não me anuncia nada, perspicaz teci um riso sereno enquanto os meus pés sentiam um cheiro de corpo ferido. os teus olhos cruzaram os meus já sem vida. o galo cantou três vezes todas as manhãs destes quinhentos e sessenta e cinco dias e todas as manhãs destes quinhentos e sessenta e cinco dias os meus olhos arregalados não quiseram ouvi-lo. o teu corpo tombou morto sobre o chão da calçada onde tantas vezes passeamos as mãos dadas. as horas nunca mais conheceram outro relógio e eu nunca mais conheci outras horas. falei com a voz trémula enquanto os rostos cabisbaixos esperavam o meu abraço, recordo a face da tua mãe com os olhos postos em mim, os olhos de onde nunca vi sair uma lágrima. esperavam que eu mentisse e dissesse que o tempo pode ser revirado, esperavam que eu caísse mas fiz-me forte e com as mãos escondidas atrás das costas apaguei as palavras e deixei que o silêncio respondesse por mim a todas as perguntas que me apertavam o lugar do coração. fugi quando abriram o caixão e descobriram o teu rosto sem vida. fugi de mim para me ser chão, chão pisado por muitos, chão. os teus olhos fechados olhavam as tuas próprias pálpebras enquanto rosas eram deitadas a medo sobre o teu corpo muito bem vestido. e eles foram-se e eu fiquei-me a cozinhar lembranças, a escrever alegrias à mão na pressa dos breves instantes que sempre tive contigo . puxei de uma cadeira e olhei o teu rosto no abandono do que fomos, na ravina do que poderiamos ter sido e no desconsolo de uma morte sem berço num apartamento pequeno e tosco. eram três da madrugada e ninguém te ouviu, ninguém te ouviu gemer como um cão abandonado na rua, gemer com o pescoço atado por uma corda intencionalmente presa na varanda do apartamento pequeno e tosco, o teu corpo pendurado. ninguém te ouviu e o galo cantou três vezes mas os teus olhos arregalados não quiseram ouvi-lo, pai. o galo cantou três vezes todas as manhãs destes quinhentos e sessenta e cinco dias e todas as manhãs destes quinhentos e sessenta e cinco dias os meus olhos arregalados não quiseram ouvi-lo, pai.
2 comentários:
Um tributo sentido.
Uma homenagem.
Uma sensação de impotência, perante um facto.
Um grito.
Uma revolta. A não aceitação.
A vida existe, porque existe a morte, há sempre dualidade.
Esta narrativa é fruto de um sentir profundo.
Não sabes como te entendo.
Um beijo com carinho.
Podes pensar que não...mas nunca deixei de te acompanhar nestas tuas lides literárias...deixa-me salientar o quanto aprecio a tua emocionalidade. Imprimes um lado emotivo e pujante ao que escreves.
bj
walter
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