terça-feira, 8 de julho de 2008
maria do espírito santo
Maria coçava a cabeça com o mesmo desembaraço com que bebe um copo de aguardente logo pela manhã. Encontrei-a na berma de um desses caminhos de terra batida por onde ninguém, no seu perfeito juízo, se atreve a meter o carro. Estava a tarde quente com o sol já alto a esbarrar no topo do céu azul, bebi a última água que restava no cantil e saltei do jipe, o pó do caminho sujou-me as botas, as calças, a pele, mas não me importei. Lá estava ela, sentada nas raízes velhas de um castanheiro, as mãos empurravam um trigo seco pela garganta abaixo e os olhos, ora postos no solo ora postos em mim, pareciam desconfiar da sua sorte ao ver-me ali. Esta semana eu era a única pessoa que Maria do Espírito Santo via.
Deu-me as boas tardes como quem abre a porta de casa a um desconhecido, levantou-se e ajeitando o avental perguntou-me as horas, nem esperou pela minha resposta e torcendo o nariz ao sol que não demoraria a pôr-se, afastou-se um pouco para chamar as ovelhas, eu segui-a. Cajado na mão esquerda, o resto do trigo na direita, as roupas pretas anunciando a viuvez e a solidão, o andar desengonçado de quem já não se preocupa em dar passos certos, os pés já se habituaram a eles. Começou por contar-me as perdas da sua vida, a sua mãe morreu quando a pariu, o pai batia-lhe e quando tinha 12 anos fugira de casa. serviu durante 20 anos numa quinta mas um dia acordou com a vontade de partir a coçar-lhe a cabeça e foi-se, agarrou nas trouxas e partiu para ali, ali ficou primeiro com uma tia e agora só, o que lhe restava eram apenas recordações e memórias presas entre as tantas rugas empoeiradas.
Maria viu o sol esconder-se ainda a meu e com a noite a querer cair de mansinho na sua pequena casa em pedra encheu-me o cantil de água que tirou debruçada do seu poço. Agradeci e já com a porta do jipe aberta vi-lhe o primeiro sorriso seguido de muitas lágrimas. Eu era a primeira pessoa que Maria do Espírito Santo vira esta semana e talvez fosse a única neste mês.
O caminho guiava-me e com os olhos postos no retrovisor vi-a ficar pequenina, cada vez mais pequenina até desaparecer nos pontos negros da noite, a sua mão ainda ali estava acenando, acenando, acenando e o cão sentado aos seus pés de chuva chorava no latido característico de quem adivinha a despedida. Eu triste fui e sou.
4 comentários:
Olá Margarete;
Há quanto tempo...
A minha ausência tem sido temporária e circustancial.
Ao regressar, deparo-me com esta "Maria", e com uma narrativa que me transportou para uma altura da minham juventude, onde havia várias Marias, vários rebanhos, várias vidas que não sei se o seriam.
Agrada-me esta escrita, esta narrativa baseada em pessoas, e também nos seus pretos no branco.
Esta é a tua casa, uma casa que gosto sempre muito de visitar.
Olà Mar :)
Adoro passar por aqui, os teus textos são intensamente belos, a tua narrativa descriptiva é um tesouro de palavras abraçadas umas às outras que fazem a perfeição do relato... apesar da carga de tristeza que leva em cada letra, a beleza das palavras confere-lhe a magia à leitura...!
um beijinho doce.
esfrego o olho.
no canto uma lágrima... esconde-se.
*
Os teus textos deixam me sem palavras, na minha terra e em tantas outras existem tantas Marias esquecidas e que se esqueceram tambem de que são seres com vida!
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